domingo, 24 de maio de 2009

Mais um Velório

Existem livros que me fazem chorar. Mesmo que os ame, o coração se aperta, as mãos esfriam e as lágrimas brotam. Afasto-o de mim sem deixar de tentar lê-lo, temo manchá-lo com água e sal. Por trás da cortina embaçada de água salgada despejada releio as palavras já decoradas que me causam angústia e sofrimento, mas, ao mesmo tempo, sublimação. A beleza da composição a doçura do significado. O desejo ardente de conseguir fazer como, de tocar como me tocaram, e saber que alguém decifra sem medo da dor premeditada as palavras escritas por mim.

Nunca re-li trechos de alegria em minha curta existência. São os trechos lacrimosos de sombria loucura que me atraem, que me fazem ter coragem de rever o conhecido e despejar sobre o destino minha tristeza iminente. Na vida real, lágrimas curtas foram despejadas. Não choro nas mortes de conhecidos de carne e osso, choro por decepções e raiva, mas a perda jamais me fez chorar, apenas a perda das páginas é capaz disto.

Quando leio o sofrimento de outrem, o sofrimento real e profundo, não o da carne, mas o do espírito, este sim me corta o coração, me estupra a alma e me amortece os sentidos. Não sinto mais o cheiro de nada, nem ouço nada. Sinto apenas frio e sinto-me isolada, no vácuo. Perdida no espaço, sentada com um livro nas mãos, afastado do rosto pendido para que não se manche com as lágrimas inconseqüentes que escorrem dos olhos desacostumados.

Livro-me dos óculos e, mesmo que as palavras sejam borrões, são borrões decorados que decifro sem problemas. Não preciso lê-los para saber o que dizem, e não preciso fazê-lo para me lembrar da sensação. De como aquela menina solitária manchada em fuligem declarava seu amor juvenil ao amigo falecido, envolto em cinza e morte, carregado por uma figura invisível. Penso em quantas oportunidades perdidas de declaração sincera existiram, e choro ao perceber que não haverá uma segunda chance, e que um dia esta segunda chance faltará a mim da mesma maneira. Vejo a menina cair em desalento, mais uma vez solitária e vomitada no mundo, jogada ás traças sem lar nem companhia, pois todos que a receberam depois de perder tudo pela primeira vez se foram. Ela perdeu tudo novamente. E a sensação da desgraça repetida me corrói e me corrompe. Me destroça e me remonta. Revivendo das cinzas junto com a menina que insiste, pois da velha vida nova sobra uma semente que lhe abraça e lhe dá carinho. Não cura as feridas, mas as disfarça. As cicatrizes persistem, mas há uma maquiagem convincente que esconde o verdadeiro terror da criança. Os livros caídos pelo quarto, a tentativa insistente de ficar de pé. As cinzas e os cadáveres. Tudo feito de fuligem e câmeras velhas. O tear enroscado e um acordeão silencioso. A dor de uma leitora que se funde com a outra. Me lembrei do sofrimento dela como se fosse o meu, e vivi uma guerra antes de meu tempo. Eu vivi e morri uma dezena de vezes, mas ainda não me acostumei, nem com uma, nem com a outra.

Eu chorei pela manhã nos braços Dela, mas não deixei que me levasse, pois não era a minha hora, e não era meu corpo e nem o deu meu coração que estava envolto em fuligem e em morte. Chorei junto com ela pela missão estúpida e injusta, me perdi no remorso dela, e assumi como se fosse meu. Chorei pelos que assassinei, e pensei se mais alguém choraria sobre seus túmulos. Fechei a capa e esfreguei as lágrimas, não permitiria que me vissem de tal maneira. As lágrimas são reais, e escondidas. Os olhos vermelhos e inchados se recuperam logo, e estão todos ocupados para se preocupar com mais um velório.

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-quando chorei, o céu já estava claro, o relógio silencioso e a água corria na pia da cozinha.


-meu nome não é Níh;

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Sem Título 2

As crianças passavam despercebidas entre as vielas e becos da cidade abandonada. Em pequenos grupos rastejavam como ratos, escondidas nas sombras dos prédios vazios, cutucando latas de lixo a muito não usadas, se aproximando de velhas vendas destruídas. Caminhavam com dificuldade pelas ruas esburacadas e sinuosas, sem receber manutenção por muito tempo.
Os olhos pequenos e redondos rondavam o horizonte, esperançosos, quebrados pela vida e opacos pela morte, eles tentavam se agarrar a um resquício de esperança. Mas tal esperança não durava mais do que segundos. Ligeiramente eram capazes de perceber que o insucesso havia sido decidido para aquele dia, e tentavam prosseguir inutilmente única, e exclusivamente, devido a sua natureza humana.
De pés descalços e canelas finas, eles se revezavam na vigília. Sempre havia um deixado para trás, que deveria olhar por cima de seus ombros, fitando as ruelas vindas das entranhas da cidade, garantindo, assim, a segurança do grupo desnutrido.
No grupo de garotos havia uma única menina. Os cabelos compridos e embaraçados haviam sido enrolados e colocados para dentro do chapéu surrado que ela levava na cabeça, as roupas rasgadas, sujas e largas tornavam-na quase imperceptível. Misturava-se ao grupo com naturalidade, correndo com eles pela sujeira e pela imundice, tão cheia de vontade quanto os demais.
Por metros e metros, que chegavam a formar quilômetros, nenhum som era ouvido, exceto aqueles emitidos pelos próprios. As risadas inconseqüentes, as exclamações ansiosas, as frases mal estruturadas, raramente capazes de formar orações. Se conheciam e cuidavam um do outro, mas não eram apenas eles, sozinhos e abandonados. Havia os órfãos, mas todos tinham onde ficar. Em tempos como aquele, ninguém é deixado para trás, especialmente uma criança. A segurança, a perpetuação são mais importantes que a unidade familiar. E aqueles que perderam tudo e todos se uniram e formaram uma única família, uma única unidade. Alguns ali faziam parte daquilo. Não se envergonhavam, mas tampouco falavam disso. Crianças não falam dessas coisas. Elas se machucam, riem e morrem juntas, mas não conversam sobre essas coisas.
Cuidadosos, eles temiam atravessar a enorme avenida principal que criava uma fenda no meio da cidade abandonada, distante dos prédios e das casas destruídas. Sempre unidos junto a calçada, às vezes nas curtas paralelas, eles caminhavam de ombros curvados, paranóicos e amontoados. Quando um deles ordenou o silêncio do resto do grupo com um gestos, os ouvidos acostumados com berros e silêncio ouviram as risadas mais velhas vindas de não muito distantes. Como se fossem uma única criatura, eles se jogaram para dentro das sombras que uma casa formava com o que poderia ter sido uma padaria algum dia. Encolhiam-se ali, quase não respirando, tentando não ser percebidos.
Foi necessário pouco mais de dez minutos para que eles avistassem a fonte dos ruídos, e o conhecimento apenas os fez temer ainda mais. Unidos, um dos meninos segurou a mão da menina. Ela rezava sem voz, os lábios se movendo e os olhos fechados, segurando a mão dele com uma força avassaladora.
Um pequeno grupo de cerca de dez adolescentes surgiu do outro lado da avenida. Surrados, magros e descuidados, tanto quanto as crianças. Apenas rapazes formavam o grupo que tinha uma postura ameaçadora. As cabeças erguidas enquanto andavam pelas ruas de pedras soltas lhes davam a aparência de delinqüentes, o que trouxe ainda mais terror para a minúscula existência dos pequenos. Dentre os jovens, um destoava. Ele tinha a expressão séria, olhava com olhos estreitos para os lados, constantemente paranóico. Ele parecia não querer estar ali.
Atravessaram sem precisar de muito tempo as distâncias, passaram por onde as crianças estavam sem as notar. Desapareceram no horizonte, passando pelas vendas sucateadas e edifícios falecidos sem se deterem. Ou não tinham medo, ou tinham tanto que preferiam partir o mais rápido possível.
O sol brilhava no centro do céu azul, castigando a pele das crianças amedrontadas, ameaçando roubar-lhe o esconderijo nas sombras da manhã. Mas somente quando tiveram certeza de que os maiores estavam longe demais para vê-los ou ouvi-los é que saíram de seu esconderijo precário. Voltaram sem demora a perambular por entre as construções, apressando-se ao ver que o sol começava a perder altura, sempre no sentido oposto ao dos adolescentes. Pulavam nos parapeitos das janelas escancaradas, colocando as cabeças para dentro e grunhindo insatisfeito com o que viam, ou melhor, com o que não viam. Nada mais havia para ser resgatado, encontrado, comigo. Haviam realizado uma longa e inútil viagem pelas ruínas, não teriam lucro algum, nem mesmo um lucro miserável para levar de volta para seus barracos.
Descontentes e famintos, voltaram as costas par ao fracasso, e tomaram as pedras que os levariam par ao local de onde vieram. Mas desta vez eles não andavam sem se apressavam, corriam desesperados como pequenos foguetes feitos de ossos na direção das bordas da cidade, da periferia resgatada e lacrada, bloqueada contra os terrores da realidade. A periferia estava imunda como jamais havia estado, o cheiro de esgoto e morte subia no ar e manchas de sangue pintavam as casas lacradas. Era possível ouvir o murmúrio de vida humilhada por ali. Ao alcançarem aquele local, quando o sol estava próximo do crepúsculo, o grupo se separou. Espalharam-se entre as casas, despedindo-se com acenos casuais, apressados demais para dar atenção uns para os outros, haveria o dia seguinte para esse tipo de besteira adulta.
Entrando por frestas abertas propositalmente nas casas lacradas, eles invadiram a segurança. A garota foi a que de mais tempo necessitou, chegando a ver o céu ficar arroxeado, balançando os pés inquieta, os dedos agitados, o coração palpitante. Um tábua foi retirada na parte debaixo da porta diante da qual havia se prostrado, e pelo minúsculo buraco ela rastejou. Menos de três segundos depois de que já estava no interior da escuridão, a fresta foi lacrada novamente, com ainda mais força. O som de algo extremamente pesado sendo arrastado inundou o local e arranhou seus tímpanos.
Um par de braços rodearam a menina, livrando-a do chapéu e soltando os cabelos sujos e embaraçados. Os braços esqueléticos eram duros e desconfortáveis, mas a arrastaram para um canto da casa, onde lhe forçou a sentar, agarrada a dona dos braços. Os olhos pesados e exaustos começaram a cerrar-se, e, no silêncio, eles nada ouviram por longos e penosos minutos. Até que elas vieram.
Murros insuportáveis nas portas lacradas, fazendo madeira, pedra e metal rangerem penosamente. Insistentes e furiosos, o som dos murros contra as portas aumentava e soava sem medo e sem intervalos. Nenhuma palavra foi dita, nenhuma respiração mais alta executada. O silêncio reinava entre os habitantes do abrigo, encolhidos e aterrorizados demais para dizerem qualquer coisa que fosse. E enquanto os adultos tremiam na infelicidade, a criança, acostumada com o terror, e cansada demais para insistir, adormecia. Adormecera entre os braços esqueléticos, no meio dos berros de terror e agonia, sem saber se veria seus amigos no dia seguintes, sem saber se existiria no dia seguinte. O terror batia nas paredes, e repercutia no interior do barraco, mas lá ele não era capaz de entrar. A noite se arrastou no frio e no terror, a menina adormecida suspirando e encolhida, amedrontada com seus pesadelos reais.
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“Mais difícil que entender porque sua girafa é vermelha e tem uma trompa, é entender porque a porca dele é preta com olhos de gato” - provérbio dos sonhadores. (walking in the air, 2a página - By Me)
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comentário da autora:
perdoe-me a demora, e a fraqueza deste segundo conto...A semana passada foi corrida, e esta, pobre. Semana que vem algo melhor virá. Tenho certeza disso.
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-meu nome não é Níh;