quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

A primeira carta do Papai-Noel

Grinaldas (ou guirlandas, tanto faz o nome pelo qual se conheça) nas portas. A casinha do papai noel montada no shopping. A árvore de Natal no centro da cidade com todas as suas luzinhas e seu espaço no telejornal da hora do almoço.

Estes detalhes impossíveis de ignorar anunciavam para a pequena Mary de que, sim, o Natal estava chegando.

"E igual a todos os outros anos" ela pensou, vendo as crianças mais novas fazendo fila para sentar no colo do papai noel e fazer seus pedidos.

Quando Mary era mais nova, ela adorava o Natal. Era legal montar a árvore na sala e ver a mãe, a tia e a avó preparando as comidas para a ceia. Imitava fielmente Cindy-Lou Quem, colocando um prato com cookies caseiros e um copo de leite ao lado da árvore, para que o Papai Noel pudesse se alimentar antes de continuar com a difícil tarefa de distribuir presentes.

Aproveitava como ninguém a maratona de filmes na televisão, e sempre ficava com muita pena de Jack Esqueleto. "Ele só queria ajudar, mamãe! Mas o coitadinho fez tudo errado" lamuriava-se, abraçada à mãe que, muitas vezes, apenas ria por rir, já que não estava mais prestando atenção no filme que estava vendo pela centésima vez.

Na verdade, o maior pesadelo da mãe de Mary era a maratona dos ‘Fantasmas do Natal’. “Porquê tantas versões?” ela se perguntava, em agonia, mas nunca dizia nada. Mary sorria diante da televisão e os olhos brilhavam, empolgada. “Meu favorito é o fantasma do natal presente” ela dizia “ele é o mais malvado, mas eu gosto dele!”. Na verdade, Mary sempre gostava dos malvados...

Nunca aceitava se sentar no colo daqueles papais-noéis estranhos parados nos shoppings, com suas "duendes" ou "mamães-noéis" de saias curtas. "Aquele não é o papai noel, mamãe" explicava a menina, com uma eloqüência de gente grande "E eu tenho várias coisas que provam isso." A mãe sorria, e erguia a sobrancelha, intrigada "É mesmo? E que coisas são essas?". Mary costumava inflar o peito nessa hora, louca para mostrar com era inteligente e perspicaz "Ora essa, primeiro: o papai-noel não poderia estar aqui, ele esta no pólo norte, terminando de revisar a lista das crianças boas e das crianças más. Segundo: como ele estaria em todos os shoppings ao mesmo tempo? Terceiro: não precisamos ir pedir pessoalmente, basta escrever a cartinha e deixá-la embaixo do travesseiro, que ele recebe ela e sabe exatamente o que te dar e, por último, e mais importante: a esposa do papai noel tem a idade dele, mamãe! Ele nunca se casaria com essas moças magrelas e novinhas".

Esse era o ponto que a mãe de Mary ria no meio do shopping, se ajoelhando no piso frio e abraçando a filha com orgulho, mesmo que ela não entendesse o porque de tanta euforia.

Foi quando seu primo mais velho berrou na véspera de Natal, enquanto ela deixava o prato de cookies e o copo de leite ao lado da árvore, que ela era uma burra (e, veja bem, Mary se achava uma menina muito inteligente) por acreditar no papai-noel, que toda a alegria natalina começou a derreter como a neve faria se estivesse embaixo do sol escaldante que fazia na cidade. A coisa se tornou pior quando ela perguntou para os pais se o primo estava certo, e eles apenas conseguiram olhar um para o outro. Ela sabia o que aquele olhar significava (pois, apesar do que estava sentindo naquele momento, Mary era sim uma menina esperta e inteligente). Foi uma madrugada de Natal ao som de choros, berros, os primeiros palavrões daquela menina de seis anos e meio e um presente quebrado (o do primo de Mary, é claro. Ela fez questão de achá-lo no armário dos fundos e pisoteá-lo na frente do menino.) Desde então, o Natal nunca mais foi o mesmo.

Tudo aquilo parecia ensolarado demais, fedido demais, repetitivo demais.

"São as mesmas propagandas, as mesmas roupas, os mesmos filmes" reclamava sentada no carro com ar-condicionado e vendo o mundo derretendo do lado de fora. Realmente, a não-tão-pequena Mary havia se enjoado de tudo aquilo. Exagerava um pouco, é claro, como qualquer pré-adolescente (ela gostava dos filmes repetitivos da sua infância que não havia partido há tanto tempo). "Eu odeio o Natal!" afirmava, sem nenhum remorso, quando chegava em casa depois de exaustivas compras em lojas cheias de filas e pessoas berrando.

Recebia os presentes com dois dias de antecedência, e não montavam mais árvore de Natal. Costumava chegar bem perto da súplica para que não precisasse ir à ceia. Era detestável ser obrigada a ficar com tantas pessoas felizes (ou que pelo menos fingiam estar felizes, afinal: era natal...), preferia (sem sombra de dúvidas) se sentar no próprio quarto, ligar a televisão e ver os clássicos natalinos. "Menos Rudolph" pensava sozinha, mudando os canais "aquela rena com o nariz brilhante me irrita".

Não que se irritasse pelo fato do nariz ser brilhante (afinal de contas, o cachorro de Jack Esqueleto, Zero, também tinha o nariz brilhante - e ela havia colocado este nome em um de seus cachorros, sendo que o outro se chamava Max, por causa do Grinch ) mas aquela rena alegrinha que salvava o Natal tirava-lhe do sério. "Se ele fosse esperto e usasse um carro, ou faróis no trenó, pelo menos, não precisaria de uma rena mutante" e isso ela pensava desde antes do terrível incidente que envolvia lágrimas, gritos e rodinhas despedaçadas.

"A verdade é que ninguém precisa do Natal" pensou, na madrugada de Natal daquele ano, deitada na cama, encarando o teto. "Ninguém precisa de Natal... Aliás, se não tivesse Natal seria muito melhor. Bem mais ecológico, menos consumista. Ninguém teria que ficar endividado por meses à fio por causa dessa celebração estúpida. Afinal, porque ganhamos presentes? O aniversário é de Jesus, não nosso" quem lhe forneceu o último argumento foi um amigo judeu, mas ele também não acreditava em Jesus, então ele simplesmente não gostava do Natal por isso. Mary nunca perguntou o que se celebrava no Hanukah, gostava de explicações sucintas, e o amigo-judeu-de-Mary não era bom em explicações sucintas.

Aquele pensamento roundou Mary por várias noites, até o Ano Novo. Essa festa sim ela gostava, e achava lógica a comemoração. “É como um nascimento, o início de um novo ano” dizia logo depois dos fogos. “Ou como um velório” disse seu tio “a morte de um antigo”. Mary entortou a boca com o comentário do tio, e ignorou-o sem nenhuma cerimônia. Sempre que ouvia algo que não achasse importante, ignorava ferozmente, tentando deletar a informação imposta de seu cérebro, para que o espaço fosse ocupado por algo útil.

Durante aquele ano, as coisas aconteceram como sempre. Houve a Páscoa (que também causava certos desconfortos em Mary, mas essa é outra história) e seus ovos e coelhinhos amarelos e saltitantes e tudo continuou como sempre. O dia das crianças (no qual ela não ganhava mais presentes, e aquilo lhe causava uma averão especial ao dia) com suas propagandas entusiasmadas na televisão, o dia dos namorados (que não significava nada, porque ela era muito nova para ter um) com seus chocolates especiais e corações pendurados nas lojas, o dia das bruxas (a festividade favorita de Mary!) no qual tudo era roxo, preto e laranja, e haviam abóboras e fantasias para todos os lados. E então, para todos os lados, o tema era a pomba da paz e as roupas brancas para o ano novo. “Pularam o Natal!” ela pensou, abismada, olhando os shoppings sem casinha do papai noel e as portas sem grinaldas. “Esqueceram no Natal!” conclui, com um sorriso amplo nos lábios.

E, novamente, Mary estava certa. Haviam esquecido do Natal. Ninguém parecia lembrar dele, naquele ano não haveriam presentes (Mary ficou um pouco triste por causa disso) e também não haveria ceia forçada nem todas aquelas coisas incomodas que forçam agente a fazer no Natal (e isso compensou a falta de presentes).

O mês aconteceu como todos os outros, sem nenhuma mudança. Alguns parentes de outras cidades foram passar o final de semana na casa de Mary e de seus pais, e eles ficaram acordados até muito tarde, rindo. Ela brincou com as primas e os primos, e eles fizeram tanta bagunça que os pais de todos os eles lhes deram uma bronca monstruosa. Comeram bastante, como raramente comiam, e isso fez a maior parte sentir bastante sono. Dormiu deitada no colo da mãe, que estava sentada no sofá da sala, bebendo vinho e rindo de piadas antigas. A música e as vozes altas se arrastaram pela noite, e, uma a uma, as crianças caíram no sono. Algumas no sofá, algumas na cama, e o mais novo dos primos de Mary chegou a dormi no chão ao lado da mesa de jantar, enrolado em si mesmo como um cachorrinho.

Quando Mary acordou era cedo demais para que havia dormido tão tarde, e não estava mais na sala. Estava deitada na sua cama, com os primos que tinham se arranjado em colchões espalhados pelo chão. Espreguiçou-se com um sorriso amplo nos lábios de garotinha e, o mais silenciosamente que pôde, passou pelos vãos entre os colchões para sair do quarto. A sala estava silenciosa, e até mesmo os ratos dormiam. Ela caminhou nas pontas dos pés até a sala, que ainda mostrava vestígios da noite anterior. Ao lado da varanda, havia uma pilha de caixas de papelão. Se aproximou vagarosamente, e notou que cada caixa tinha um nome escrito em uma letra antiquada.

Em uma das caixas, estava escrito o seu nome, e o coração disparou quando viu aquilo. Olhou para os lados, três vezes, antes de pegar a caixa e andar até o sofá com ela, apoiando-a entre as pernas no chão, e abrindo a tampa. Havia uma caixa menor e, no topo, uma carta.

Feliz manhã de Natal, pequena Mary

Espero que tenha se divertido durante esta madrugada, e espero que esteja feliz.

Eu sei que durante os últimos anos o Natal pareceu algo terrível, principalmente porque todo mundo sempre pareceu tão triste e angustiado nessa época do ano. Eu ouvi bem suas reclamações, e acho que você estava certa. Seria bom para as pessoas se não houvesse Natal, pelo menos não esse Natal que eles criaram, ainda porque roubaram a minha função, não é?

Como você me parece uma menina muito esperta, resolvi seguir o seu conselho e eliminei o Natal. O que achou? Me pareceu bastante divertido, ainda porque vi como você sorria adormecida no colo da sua mãe.

Mas, é claro que o Natal não deixou de existir, nem mesmo eu sou capaz de cancelar isso. Apenas apertei o botão reset (é assim que vocês jovens chamam, não é?) e comecei tudo do zero. Voltamos no tempo para a época que eu deixava presentes nas casas escondido, na calada da noite, e todos ficavam felizes na manhã seguinte.

E eu já comecei! Acho que vai gostar do presente –apesar de não ter deixado nenhuma carta embaixo do travesseiro para que o Morfeus fosse buscar para mim e eu saber o que você queria de presente – tem muito de você nele.

Beijos, e, novamente, tenha um Feliz Novo Natal.

São Nicolau

Ps.: sabia que essa é a primeira vez que eu escrevo uma carta?

Mary estava espantadíssima com aquilo, e não largou a carta enquanto abria a caixa menor. Lá dentro havia apenas um objeto retangular, que ela pegou cuidadosamente. A capa era preta e dura, e devia ter pelo menos umas duzentas páginas ali. Um elástico grosso impedia-o de se abrir, e ela soltou-o com cuidado, sem largar a carta. As páginas amareladas tinham linhas pretas bem claras e nada escrito. Encaixado na lombada, havia uma caneta preta de escrita fina e macia.

Naquela manhã, sozinha na sala, Mary sorriu sozinha com muitos pensamentos na cabeça.

Ficou muito feliz pelo presente, e abraçou-o com força, amassando a carta que não largava de jeito nenhum.

Ficou muito feliz por ter ajudado alguém muito importante a fazer algo muito bom, e o seu sorriso aumento por isso.

Se lembrou com clareza de uma frase antiga, mas substituiu seu nome sem nenhum remorso nela. ( “E o coraçãozinho da Mary cresceu três vezes naquele dia...”).

E, sim, ela era uma criança esperta e inteligente, muito mais inteligente do que seu primo mais velho que há anos atrás havia perdido um caminhãozinho de controle remoto.






Escrevi este conto afim de lembrar o que, para mim, é o verdadeiro Natal. Aquele momento em paz com as pessoas que você ama, sorrindo sem nenhuma obrigação de sorri, estando com alguém que você não é obrigado a estar. Aquele momento de abraçar o pedacinho de família especial que você tem, e festejar o simples fato de se estar juntos. Mesmo que esse Natal pareça distante e utópico, não custa acreditar. A imaginação é o que nos salva da loucura, não custa usá-la em momentos como estes.

Espero que todos tenham um Feliz Natal. Que sua ceia tenha sido melhor que a minha, e que o almoço de Natal seja maravilhoso, e, é claro, que possam sorrir com aqueles que gostam de te ver sorrir.




Meu nome não é Níh;

domingo, 20 de dezembro de 2009

Desventuras de Tardes Tediosas - parte X

Sarah era uma típica adolescente pouco popular. Havia apenas duas saias em seu guarda roupa, saias esta que nunca usava e que haviam sido presentes de lojas distantes demais para que fosse trocá-las. Ao lado destas, estavam apenas dois vestidos, um para as viagens pouco aguardadas até a praia e outro que havia sido obrigada a usar em alguma festividade que não se lembrava qual era. Tampouco possuía muitas blusas ou camisas, e praticamente repudiava decotes. Suas gavetas amarrotadas estavam cheias de camisetas um pouco largas com estampas interessantes. Usava sempre calças compridas e tênis, e não era apenas por ter vergonha do próprio corpo, na verdade, Sarah gostava de se vestir daquele jeito.

Portanto quando Diamantina lhe apareceu com uma saia comprida rodada e uma camisa preta que lhe caía pelo ombro apenas não gritou porque havia sido criada com boa educação. Haviam calças entre os pertences da mulher mais velhas, mas ela afirmava veementemente que nenhuma delas caberia naquele corpo estreito da menina. “Estreito?” pensou Sarah, incrédula, encarando os próprios quadris que já haviam lhe rendido dezenas de apelidos degradantes.

Vestiu aquele conjunto detestável e sentiu, mais do que nunca, a falta de um bom espelho de corpo inteiro. Não havia sequer um pequeno de mão naquela maldita casa sobre rodas, imagine um que pudesse lhe dar um vislumbre de sua pateticidade. Mergulhada na ignorância, limpou os pés enregelados em um pano de baixa qualidade que a mulher lhe passou. Enquanto cuidava de sua higiene, mesmo que ainda fosse da opinião de que um verdadeiro banho teria mais apropriado, ela ouvia os passos de Diamantina pela carroça, e o som de coisas sendo abertas e fechadas.

-Coloque isso nos pés, nunca vi pés tão delicados – reclamava ela, entregando uma sandália artesanal – Incrível que não tenha se machucado na caminhada até aqui.

Os pés de Sarah encaixaram quase que perfeitamente nos sapatos oferecidos, mas, mesmo assim, eles eram incômodos. A corda lhe raspava a pele e ameaçava abrir feridas, a sola era dura, feita de madeira. Não reclamou, supondo que aquilo seria melhor do que andar descalça. Ganhou argolas douradas para as orelhas, pulseiras de ouro e prata para os pulsos (“Finos! Finos demais! Tudo em você é fino, menina?”) e Diamantina tratou de tirar o grosso da água de seus cabelos, penteando-os com um pente esculpido em pedra.

E era vestida desta maneira, sem ter coragem de olhar para seus espectadores, que Sarah sentiu as bochechas pálidas ruborizarem-se.

-Esta apresentável, mas ainda não engana ninguém – declarou Diamantina, desviando a atenção que Dimitri estava oferecendo tão prontamente a nova aparência de Sarah.

-Não, com certeza não, mas ninguém aqui esta planejando que ela seja vista – replicou ele, mostrando o sorriso de quem sabia demais.

Diamantina balançou a cabeça, bufando. Desaprovava alguma coisa, e Hani concordava com ela, mas Dimitri ignorou a opinião dos dois, oferecendo a mão para ajudar Sarah a terminar de descer os curtos degraus. Ela apenas aceitou porque tinha que se preocupar em não pisar na saia comprida e cair.

-Acho que agora só nos veremos amanhã, magricela – disse Dimitri.

-Aleluia – falou Sarah, mostrando um careta que o fez rir baixinho.

-Ótimo, que bom que ficou feliz. Vamos, Hani, vamos deixar as mulheres sozinhas.

O par de cabelos escuros e peles morenas se despediu da garota e da senhora com toda a cortesia de um par de bandoleiros, e se afastaram na direção da carroça do pai do mais velho. Sarah os partiu se afastar, sentido o frio ao seu redor se tornar mais rigoroso e triste.

-Bem, agora só resta te fazer comer e te colocar para dormir.

Sem perguntas ou notificações mais detalhadas, Diamantina a pegou pelo pulso tilintante de pulseiras e a puxou da direção de uma tenda verde-musgo a pouco mais de 10metros da casa da mais velha. Sarah sentiu o cheiro de assado feito com carne quase estragada e batatas, e se esforçou muito para esquecer aquela refeição.





"A fogueira ficou tímida, mas ele riu um riso amargo e sem gosto. As portinholas se trancaram de súbito, mas os dois se abraçaram casualmente. Uma noz se partiu naquele silêncio, e lábios secos se crisparam." - Lenços Vermelhos




-Meu nome não é Níh;

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Desventuras de Tardes Tediosas - Parte IX

Os olhos castanhos-mel de Sarah estavam arregalados enquanto ela tentava captar, de uma vez só, cada detalhe que havia para ser visto naquela casa, se é que aquilo podia ser realmente chamado de casa. No interior da carroça havia um único comôdo e nada mais, tampouco era um comôdo amplo, mas estava abarrotado de móveis e pertences que davam uma sensação de claustrofobia para qualquer pessoa normal. A luz não conseguia entrar, pois nas janelas haviam cortinas de cores escuras, e aquilo, somado ao odor de incenso, pimenta e gatos apenas piorava o enjoo que nascia na base do estômago semi-vazio de Sarah e que, cuidadosamente, tentava alcançar a boca fechada numa expressão de desgosto.

Dimitri e Hani haviam, confortavelmente, se acomodado, enquanto Sarah ainda encarava tudo aquilo surpresa.

-Não fique parada no caminho,branquinha! – exclamou Diamantina, e Sarah sentiu algo macio e firme se chocar contra a sua cabeça enquanto a mulherempurrava-a para o lado e ia para a extrema esquerda da “casa”.

Se fosse outra situação, Sarah teria se importado com a falta de polidez da senhora Diamantina, mas, como aquela era, obviamente, uma situação fora do comum, ela sesatisfez em ignorar a atitude da mulher mais velha e, com passos curtos (pois o local não lhe permitiria passos maiores) ela começou a explorar o ambiente. A porta pela qual haviam entrado estava bem próxima da parede limitante do lado esquerdo, mas isso não impediu a menina, completamente ensopada e enregelada, de caminha até ela, olhando desde o chão até o tetocom uma expressão embasbacada.

Naquele canto havia uma pequena sequência de prateleiras com pouco mais de trinta centímetros de comprimento e um palmo de profundidade, vários recipientes cilídricos de algo como porcelana ou cerâmica estavam enfileirados e, quando a garota levantou uma das tampas de madeira polida percebeu que havia todo tipo de especiaria e temperos ali. Pimenta, orégano, sal,salsinha, dentre outros. Abaixo uma pilha de pequenas toras de lenha bem cortada estavam empilhadas e seguras por uma corda feita a mão, que, momentâneamente, chamou a atenção da garota.

Acima de tudo aquilo, pendurado pelo teto, haviam três doninhaspenduradas pelo pescoço, todas mortas, uma já sem pele e salgada. Aquela visão fez o estômago da garota embrulhar ainda mais, e ela recuou, enojada. Sem ver para onde ia, seu pé descalço bateu com força em um pequeno móvel de madeira com várias gavetas e ela deixou uma exclamação, e um palavrão, escapar pelos lábios juvenis. Hani a olhou e conteve o riso, Dimitri mostrou um sorrisinho que a desagradou e Diamantina balançou a cabeça, novamente como se visse algo com a qual discordava.

Sarah tinha certeza de que estava corada, mas tentou não pensar nisso, voltando a observar os bens empilhados ali dentro. Havia um sofá coberto por uma espécie de colcha colorida no qual Dimitri eHani estavam sentados, e, diante deles, atrapalhando de maneira incompensável a movimentação, uma mesa circular centraliza e, ainda dois pufes que se esparramavam pelo chão. Acima daquilo haviam bolsas feitas à mão, todas cheias dos mais diversos pertences. Diamantina guardava lenços, saias, colares e rubis dentro daquelas bolsas, e Sarah descobriu isso ao pegar uma na mão para olhar o que tinha dentro e receber uma belíssima bronca da dona da casa.

Envergonhada, mas nem por isso inibida, Sarah recolocou a bolsa no lugar e passou entre o grupo de três no qual apenas uma pessoa falava, e falava muito e com as mãos.

-Seu pai acha que eu sou um brinquedinho, só pode! Não é porque aconteceu uma vez que vai acontecer de novo! –dizia Diamantina, aparentemente revoltada com alguma coisa que Sarah desconhecia e, naquele momento, nem queria conhecer. Era curiosa, sim, mas preferia a curiosidade automaticamente sanada, do que aquele que exigia de sua parte foco e silêncio.

Portanto continuou caminhando na direção da outra parede e, para chegar ao final, ela teve que passar por uma cortina feita de uma dezena de fios cheios de uma centena de contas feitas de todo tipo de material. Quando empurrou os fios para passar, as contas se chocaram produzindo um som musical que atraiu a atenção momentânea do trio, especialmente dos rapazes, mas que foi quase completamente ignorado pela garota.

Aquela região um pouco separada devia ter a função de um quarto, pois havia uma cama, ou melhor, algo que parecia-se muito com uma cama ali. Não havia pernas nela, e a adolescente teria jurada que a quase tábua de madeira com um colchão remendado e colchas feitas à mão estava flutuando se não tivesse visto as correntes que prendiam-na na parede. Acima da pseudo-cama uma coleção de filtros-de-sonhos estava cuidadosamente pendurado, haviam vários de todas as cores, materiais e até mesmo formatos! Sarah os observou fascinada, pois sempre gostou muito daquelesobjetos vendidos em feiras hippiesnas praças de sua cidade, mas havia um especial, que ficava acima do travesseiro, que lhe chamou a atenção de maneira especial: era formado por três finas tiras de madeira que, entrelaçadas umas nas outras formavam um triângulo isóscele com uma das pontas para cima. Na base três penas estavam penduradas, acompanhadas de pequenas pedras opacas querefletiam o olho castanho da menina.

Ainda sorrindo para a coleção deobjetos incomuns, ela caminhou atétrombar novamente com um dos móveis mais baixo de Diamantina. Este se parecia bastante com o primeiro que lhe causara dor, ia até o seu quadril e abrigava uma coleção de cinco gavetas, todas com puxadores de bronze trabalhado. No alto dela havia uma lata redonda feita de um metal grosso, a tampa estava apoiada ao lado dela e algumas coisas vazavam para fora, como se tentassem aproveitar enquanto podiam respirar.

Os objetos lhe chamaram atenção, e ela esqueceu que estava no quarto de outra pessoa, que não era sequer sua amiga ou, realmente, conhecida. Era a conhecida de dois conhecidos seus, no máximo. Mas aquilo não conteve os dedos enrugados pelo frio e pela água de irem tocar no que não deveriam. Acima de tudo estava um lenço vermelho de pura seda, que, na verdade, ela descobriu não ser exatamente um simples lenço, era comprido demais para isso, e talvez largo demais também (quase tão largo quanto seus ombros!). Abaixo dele havia coisas que ela não entendia porque estavam ali. Um envelope dobrado ao meio, uma caixinha de madeira, um anel de ouro com uma gigantesca esmeralda polida e...

Sarah aproximou a mão, tocando o metal claro que se destacava abaixo de tudo, e estava prestes a puxar a jóia, ou o que quer fosse, do fundo da caixa passos vieram na sua direção e as contas atrás dela se agitaram muito mais do que quando ela havia passado por ali.

-E agora chega de conversa! –exclamou Diamantina, puxando Sarah pelo antebraço e soltando a mão dela da caixa, que fechou num estrondo ríspido –Você esta ensopada e provavelmente faminta! E isso eu não vou permitir! – Ela empurrou as contas para abrir caminho –Vocês dois: pra fora! Eu não quero saber de dois marmanjos no mesmo lugar que uma garota, mesmo que seja uma branquela, esta se trocando. Um, dois, três! Andem logo!

E Diamantina praticamente os expulsou à pontapés de sua casa minúscula cheia de móveis nos quais Dimitri e Hani encontraram obstáculos para sair dali com rapidez suficiente. Quando a porta se fechou atrás dos dois, a mulher de seios avantajados demais olhou para a menina e a estudou por dois minutos.

-Bem, acho que vou ter que desenterrar algumas roupas para caberem em você...

Dimitri e Hani estavam embaixo do toldo diante da carroça-casa esperando que Diamantina lhes permitisse voltar para dentro.Dimitri encostara-se na parede de madeira da carroça, observando o vai e vem de pessoas que sorriam para ele e o cumprimentavam amistosas. Uma bola feita do couro de algum animal, provavelmente um porco ou um javali, girou até seus pés e ele cuidou de pegá-la e jogar de volta para a roda de meninos que havia se formado no meio do lamaçal. Hani, que estava ao seu lado, encarando o filtro-de-sonhos tridimensional que Diamantina havia confeccionado, não recebia a mesma atenção. Ninguém o cumprimentava e nenhuma bola desgovernada ia na direção de seus pés, mas, aparentemente, o rapaz ignorava o fato de ser ignorado, e continuava a cutucar o objeto que, provavelmente, era frágil demais para ele o fazê-lo.

Perderam meia hora naquela monotonia, e Hani estava quase batendo na porta quando esta se abriu e Diamantina desceu os dois degraus encostado junto à entrada.

-Foi quase impossível encontrar algo que servisse na menina, mas até que não ficou tão ruim.

E, atrás de Diamantina, surgiu uma garota completamente diferente daquela que Hani e Dimitri havia conhecido no meio da chuva. E tanto um quanto o outro rapaz precisaram de alguns instantes para reconhecê-la plenamente.

-Eu ‘to ridícula, podem dizer – falou Sarah, martirizada.

Hani não reagiu, mas Dimitri sorriu.

-Nem tanto, magrela...





"Àquela hora todos os olhos vivos estavam fechados e adormecidos, sem exceção alguma. E, enquanto a cidade silenciosa desfrutava da noite, ele estava em pé na janela, observando com olhos que poucos viam aquela lua prateada e gigantescas que, como uma mãe carinhosa mas severa, despejava seu carinho luminosos por toda a cidade calada." - Lenços Vermelhos





Meu nome não é Níh;



assistam:

http://www.youtube.com/watch?v=sk3SrRi_Mds&feature=player_embedded

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Desventuras de Tardes Tediosas - Parte VIII

Sarah havia se acostumado a ouvir que era gorda. Sabia que amava comer e que devia fazê-lo menos, mas nem por isso seguia seus próprios conselhos. Portanto, diariamente suportava as ofensas de seus colegas de escola, e dos transeuntes intrometidos com os quais esbarrava, e dos professores da academia, e de seus primos, tios e avós. Havia se acostumado, mas isso não quer dizer que havia deixado de se ferir. Se um cachorro apanha todo dia, cedo ou tarde aquilo se tornará rotineiro, mas não fará a chinelada doer menos.

Portanto, quando ouviu daqueles dois estranhos que, incrível e infelizmente, eram as únicas pessoas que ela “conhecia” naquele lugar ela percebeu que machucou, e machucou da mesma maneira que machucava quando sua mãe falava-a para pegar uma colher a menos de feijão ou algo assim.

E não entendeu porque, e nem em qual momento, alguma coisa que os dois palermas diziam importava. E não saber isso deixou-a furiosa consigo mesma, e com aquele mundo estúpido e fétido ao seu redor. E aquela raiva a deixou com fome, muita fome. E pensou novamente no fato de a terem chamado de gorda, mas aquilo, naquele momento, não a chateou. A fez querer comer ainda mais, de raiva e birra. Sendo assim, quando voltou a encarar os dois rapazes ainda desnorteados, as lágrimas estavam secas e as sobrancelhas contraídas. Dimitri e Hani se entreolharam, perdidos, e Sarah abriu um sorriso maldoso que apenas ela entendeu.

-E ainda estamos aqui porque mesmo? – perguntou, deixando o par diante de si estupefatos. E aquelas expressões a fizeram rir baixinho, um riso só seu.

-Você é estranha, garota. – disse Hani, balançando a cabeça.

-E não pense que você é lá muito normal, garoto – Hani se assustou com a reação, deixando as pupilas se dilatarem antes que percebesse.

-Epa, epa, vamos parando por aqui – falou Dimitri, tocando o ombro do amigo que parecia estar começando a formar a palavra “garoto” na sua mente, e aquilo não lhe agradou. –Vamos antes que chova novamente e ela se irrite ainda mais – e, dizendo isso, o mais velho empurrou o embasbacado para trás, olhando para Sarah, que sorria internamente e triunfante.

Dimitri e ela se olharam, e ele abriu um sorriso debochado, quase uma risada. E ela também teria rido, se aquilo não fosse dar a mão a palmatória.

Os três caminharam na direção de uma casa-carroça localizada exatamente no meio da distância entre duas aberturas na parede. No caminho, garotas acenaram para eles e crianças correram entre suas pernas. Todos olhavam curiosos para Sarah, que tinha certeza de sua aparência deprimente. A calça molhada e pesada escorregava pela cadeira, e a camiseta larga estava grudada, moldando seus seios sem atrativos e a cintura que, na sua opinião, era deformada. As mulheres e senhoritas juntavam as cabeças para cochichar, os homens encaravam-a sem nenhuma vergonha. As crianças caminhavam ao seu lado, cutucando suas pernas e puxando suas roupas.

Havia um grito entalado em sua garganta, um grito de formas e cores únicas, mas que ela tratava de manter escondido. Espiava seus observadores com a mesma falta de pudor destes, e ninguém parecia se ofender. Quando Dimitri e Hani pararam, ela quase trombou com eles, parando a um dedo de distância das costas do mais novo. Quando encarou a roupa velha, recuou dois passos, visualizando melhor a casa na porta da qual Dimitri estava batendo.

A porta, as janelas e as rodas eram pintadas de um vermelho vivo e sedutor, simpático o suficiente para atrair a atenção certa. O teto era azul escuro, e as paredes da cor da própria madeira. Também azul escuro havia uma espécie de toldo que cobria toda a entrada, protegendo-a da chuva.

Dimitri bateu duas vezes na porta vermelha, e ela notou que a tinta estava começando a descascar. O som de alguém se movendo lá dentro, e a impressão de que o espaço era pequeno, soou até quatro passos atrás de Sarah.

-Só um minuto! – gritou a voz feminina lá dentro.

Em pouco estantes a porta se abriu, fazendo o queixo de Sarah ameaçar despencar. Em pé na porta estava uma mulher que pareci ter saído de um livro de contos. Os cabelos pretos eram densos e longos, presos em um rabo de cavalo puxado para frente. O vestido de camiseta branca e saia vermelha tinha um decote avantajado (ou seriam os seios da sra. Diamantina que eram grandes demais para suas roupas?). Era portava pulseiras, brincos de argolas, moedas costuradas na saia, tornozeleiras, todos de ouro. Era espalhafatosa e um pouco grande demais, os olhos escuros eram densos e profundos e fitaram Sarah com peso. Aquele olhar fez a menina se encolher, e a sobrancelha da mulher se erguer.

-Boa tarde, Diamantina – disse Dimitri, atraindo a atenção da dona da casa, que abriu um largo sorriso nos lábios rubros ao vê-lo.

-Dimitri, menino! – disse, quase gritando, enquanto abria os braços e o abraçava calorosamente.

Dimitri se tornou excessivamente diminuto ao lado de Diamantina e de seus seios, e aquilo gerava ondas de riso na barriga de Sarah que estavam se tornando difíceis de segurar.

-Finalmente veio me ver? Eu duvido! Aposto que tem alguma razão por trás dessa visita! Alguma coisa do seu pai, não é? – ela a encarou, e ele não conseguiu negar. –Háh, eu sabia! Cois do seu pai, é claro, Hani esta aqui e você esta com uma branca magricela! – os olhos da mulher de pele queimada de sol fitaram Sarah, que se surpreendeu com a alcunha e “magricela”, ignorando deliberadamente o “branca”.

exatamente sobre ela que eu queria falar – começou o filho do líder, desvencilhando-se cuidadosamente do abraço da mulher dez anos mais velha. –Ela é uma estrangeira, e precisa de comida, casa e roupa. Meu pai achou que você seria a pessoa perfeita para garantir isso.

-Perfeita, é? –ela abaixou os olhos para encarar o rapaz, e aquele olhar se demorou com um ar de seriedade desconhecida. Um ruído surgiu no fundo da garganta de Diamantina, que balançou a cabeça, irritada. –Eu sabia que um dia iam usar isso contra mim... Mas não pensei que mandariam por você, canário! Não sabia mesmo... Agora entrem logo antes que ela congele aqui fora!

Com um passo para o lado ela abriu o caminho para que os três entrassem. Hani foi o primeiro a fazê-lo e Dimitri fez questão de ser o segundo. Sarah os seguiu o mais rápido que pôde, sentindo o olhar que Diamantina lançou-lhe, observando seu corpo da cabeça aos pés e balançando a cabeça, como se aquela visão a deixasse decepcionada.

A porta se fechou barulhenta atrás dela, mas não foi o barulho que fez o susto se espalhar pelo corpo de Sarah. Foi a visão da casa de Diamantina que a jogou para dentro de uma história infatil que a fez ficar, vejam só, sem palavras.



-Ouvia os passos e as respirações que o seguiam, sentia os cheiros incomuns e desconhecidos, mas familiares, que estavam por todas as partes. As mentes roçavam a sua como gatos curiosos que se aproximavam sorrateiramente, ele ouvia as palavras que tentavam lhe escapar como hamsters dentro de uma gaiola. Mesmo que a multidão o houvesse engolido, havia um espaço grande demais entre ele e as pessoas mais próximas. Por trás das lentes escuras, observava aqueles que haviam tido a coragem de se aproximar, e via os olhares curiosos, os sorrisos interessados, as palavras sussurradas.







-Meu Nome não é Níh;

As primeiras sete partes de uma desventura

A chuva caía insolente, jogava-se contra as janelas e esparramava-se pelo vidro, fazendo-se de íntima. Os olhos da menina seguiam as gotas suicidas em sua queda de fim próximo, perdendo-as de vista poucos segundos após concentrar-se em uma nova, e, sempre que o fazia, buscava uma nova na multidão que se arremessava das nuvens neste mundo ingrato.

Os cabelos lisos caiam sobre os ombros, o queixo encostado na madeira, a respiração criando enormes manchas embaçadas no vidro, que dissipava-se tão rápido quanto ela podia respirar. Os braços estavam caídos ao lado do corpo curvado, e ela mexia na calça de flanela que cobria as pernas roliças. A casa estava vazia, e o silêncio desfilava sem preocupação pela sala, cozinha e quartos. Imperava sem ameaça, exceto pela chuva que trovejava lá fora.

Quando era mais nova, tinha medo da chuva. Em uma tarde como esta, estaria em seu quarto, encolhida sob as cobertas, abraçando um de seus muitos bichinhos de pelúcia e escondendo o rosto na barriga deste. Mas agora estava grande demais para tais infantilidades, mesmo que os bichinhos continuassem espalhados por todo seu quarto, empilhados em prateleiras, na cama, largados no chão, chutados pelas gavetas e por ela.

Tinha muita preguiça de ir até a cozinha fazer um pouco de chocolate quente para aquecer o peito e a barriga.

A distância entre a sala e o quarto era gigantesca, portanto continuaria com os pés brancos de frio e as unhas roxas pela friagem, se ficasse doente ainda seria melhor, não precisaria ir para a escola.

Os cadernos e livros estavam preparados sobre a mesa de carvalho maciço, a lapiseira largada em cima da folha de linhas azuis, onde já havia algumas palavras escritas, mas ela não tinha interesse algum em ir estudar. Perda de tempo, irritante e nauseante. Faria-a sentir sono, e isso era a última coisa que queria: sentir sono. Não agüentava mais dormir pelos cantos, perder suas tardes sob as cobertas, deixando o mundo passar enquanto ela dormia.
Exausta de sua própria inutilidade, ergueu as costas. A visão exaustiva do campo sem nada que vinha depois de sua casa deixava-a doente, a grama indistinta que crescia horrorosa, e jamais era aparada, a colina sem romance, sem árvore e sem balanço de pneu. A garagem vazia, e os estudos atrasados. O quadro de sua vida parecia uma grande porcaria visto dali, e desistiu de pensar.

Levantou-se e olhou as roupas velhas que cobriam o corpo acima do peso, rondou com os olhos as redondezas dentro da casa, e pareceu satisfeita em comprovar que realmente encontrava-se solitária naquela tarde vazia.
Abriu a porta sem pensar mais de uma vez, deixou o vento gélido furar sua carne com as agulhas da friagem e não retesou-se. Fechou a porta as suas costas e pulou descalça na grama molhada. A água cobria-a, abraçava-a e tirava-a para dançar.

Girava sem pensar na chuva, os olhos semi abertos, sentindo a água molhar seu cabelo, seu rosto e seu corpo. Os braços abertos par ao céu, abraçando-o com carinho, cariciando-o, assim como ele acariciava-a. Permitiu que as água lhe tocassem e a rendessem, e permaneceu ali por longos minutos, correndo na grama molhada, enchendo-se de lama e grama úmida. Correu colina acima, ignorando o pinicar do mato alta que cutucava seus pés e suas panturrilhas. Foi até o alto, e girou, ficando de frente para as casas enfileiradas, de braços abertos e olhos fechados. Gritou, alto e ruidosamente, a plenos pulmões. Queria que todos, e que ninguém, a ouvisse. E berrou longamente na chuva estrondosa, e somente quando a voz lhe faltou e a garganta aranhou é que arqueou o corpo e, num impulso, alegre, abriu os olhos para ver o resultado de seus gritos mudos.
E não foram apenas seus gritos que neste momento permaneceram mudos. Todo seu corpo emudeceu diante de uma surpresa inquieta, e, sem palavras, ela despencou. Sentada na lama, com as roupas sujas e molhadas, o corpo enregelado que pensava poder contar com um banho quente encolhido, os lábios secos e as mãos trêmulas.
A chuva ainda despencava tolamente, mas não sobre sua casa e sobre a de seus vizinhos enfadonhos. Ela despencava sobre um pequeno vilarejo onde as casas eram feitas de pedra e madeira, as flores bebiam contentes da chuva incessante, a grama aparada e bela brilhava na torrente constante, e ela podia ver a luz de velas ou lareiras escapar pelas janelas redondas. e, antes que pudesse erguer, uma voz foi ouvida, e ela apenas não gritou pois uma mão bem maior que a sua tampou sua boca, e outra rodeou seu tórax, imobilizando-a.

-Calada – sussurrou a voz, cuidadosamente, em seu ouvido.

Era uma voz masculina e grave, que parecia nascer no meio da garganta e vir à tona de maneira gutural. Não era necessário muito esforço para perceber que o dono da voz também era o dono das mãos e dos braços que a calavam e a imobilizavam. Ele a fez erguer-se um pouco do chão, mas não o suficiente para que ficassem eretos. Ambos agachados rastejaram para trás de um caminho de arbustos que crescia nas bordas da estrada de terra e pequenas pedras na qual ela se encontrava. Uma vez por detrás das folhas ela foi obrigada a se ajoelhar com o homem ao seu lado, ainda com a mão sobre sua boca e o braço passando por debaixo de seus seios. Ele a detinha com menos força, atento ao observar por entre as pequenas e numerosas folhas o caminho no qual estava há pouco.

Curiosa como apenas uma adolescente é capaz de ser, mesmo que numa situação de perigo, ela se esforçou para superar a barreira natural, e ver o que ele via. Após pouco mais de dois minutos um grupo se aproximou do exato lugar onde ela havia despencado de joelhos. Dez homens formavam-no, um sobre um cavalo e todos os outros a pé. Chapéus semelhantes àqueles usados por volta do século XV cobriam cabeças nas quais perucas brancas e antiquadas encontravam residências. O homem sobre o cavalo, além de pomposo e uma expressão de absoluto nojo em relação a tudo que o cercava carregava uma estranha bandeira que ela nunca havia visto antes. Com franjas douradas nas bordas, e dividida ao meio pelas cores vermelho e preto, havia um brasão ao centro no qual duas espadas renascentistas cruzavam-se, uma gigantesca água estava pousada em suas lâminas, uma coroa em sua cabeça e uma estranha e assustadora expressão nos pequenos olhos bordados em linho e algodão.

Todos os casacos vermelhos com botões negros levavam o mesmo brasão, assim como os chapéus e as espadas que encontravam-se nas cinturas dos soldados. Eles marchavam uniformemente carregando estranhas armas, semelhantes a espingardas. Apenas quando eles se afastaram e o som dos cascos do cavalo batendo nas pedras e na terra molhada tornou-se distante e imperceptível quando um farfalhar de folhas, que o homem ergueu-a de trás dos arbustos.

-Fique quieta só mais um pouco – ele falou, sua voz encontrava-se em um tom extremamente baixo e ele guiava-a de costas para longe do vilarejo.

Após cerca de dez passos a garota que encontrava-se praticamente de pijamas notou que árvores começaram a surgir ao seu redor, eram dezenas dela se não demorou para que um verdadeiro bosque a cercasse. As copas das árvores eram tão grandes e densas que a chuva não conseguia vencê-las, e caia como um chuvisco ocasional no chão coberto de folhas mortas e amarronzadas. O homem de face desconhecida a soltou repentinamente. A perda de apoio fez com que ela cambaleasse e quase caísse sentada no chão macio. Seus dedos do pé, agora lilases, estavam imundos com a lama e fragmentos das folhas mortas, a visão lhe causou uma pequena onda de ânsia. Balançou a cabeça, agitando os longos cabelos encharcados e espalhando água para todos os lados, como um cachorro extremamente peludo após o banho.

Ergueu a cabeça para ver quem que havia imobilizado-a e, aparentemente, arrancado-a de uma situação complicada. Surpreendeu-se imensamente ao notar que o homem que encontrava-se há cinco passos de distância aparentava ter cerca de vinte anos e utilizava roupas curiosas e ultrapassadas. Quer dizer, ele usava mangas bufantes em uma camisa de linho barato, haviam várias pulseiras de couro enroladas no pulso um pouco magro, as calças verde musgo eram um pouco grudadas, e até curtas demais para os padrões aos quais ela estava acostumada. Havia brincos de argola dourados pendurados em suas orelhas, e colares de ouro velho no pescoço, além de uma bandana preta com bordados vermelhos feito a mão na cabeça, ocultando a maior parte do parecia ser uma cabelo preto e cacheado. Ele não parecia o tipo de rapaz que freqüentava a faculdade, nem mesmo as faculdades mais estranhas como a de artes cênicas, ou artes plásticas. Não, ele parecia um personagem de filme de época, o cara que dança na praça tocando uma flauta, um tambor, uma gaita, ou algo do tipo.

Seus olhos eram como um par de quartzos negros eram pontudos sem ser polidos, profundos e exuberantes e duros como a própria pedra, fixos nela com receio e uma pitada de ódio acumulado. A garota recuou, sem perceber realmente o que fazia. Estava ensopada com a chuva de seu lar e deste, apesar de as gotas serem incapazes de continuarem atingindo-a. Ele parecia tão intrigado a respeito de seus trajes quanto ela a respeito dos dele, e nenhum disse nada enquanto encaravam-se, ele forte e confiante, cheio de rancor; ela encolhida, duvidosa e até mesmo um pouco amedrontada. Depois de poucos mais que dois minutos encarando-se, foi ele que se pronunciou. A voz ainda gutural tinha tanta ameaça quanto da primeira vez que ela a ouviu, e parecia ainda mais intimidadora agora que ela encarava as feições joviais do jovem que assemelhava-se de maneira assustadora aos nômades medievais.

-O que uma branca faz longe de casa?

A pergunta fez com que ela se sentisse ligeiramente ofendida, não que não fosse branca, sabia que era, pálida como um fantasma e com olheiras gigantescas e arroxeadas ao redor dos olhos castanho-mel. Mas o que ela ser ou não ser branca tinha haver com o fato de estar longe de casa? Pensou em uma dezena de respostas mal educadas para dizer, mas não lhe pareceu sensato, portanto, quando começou a abrir a boca para retrucar, mudou de idéia, recuando o corpo e fechando a boca repentinamente.

-Digna demais para responder? – ele falou, um sorriso cafajeste e ofendido surgindo nos lábios escuros. Os dentes eram escurecidos e, um deles, dourado. Levou a mão direita para as costas e, quando esta retornou, havia uma pistola entre os dedos, apontada diretamente para a cabeça dela. – Será que agora vou ouvir sua vozinha aguda?

Os olhos dela alargaram-se instantaneamente, igualmente por medo quanto por surpresa. A pistola que lhe era apontada era extremamente rústica e antiquada, remontando o período renascentista. Feita de madeira e de ferro, era movida a pólvora e usava balas gigantescas e pesadas. Mas, apesar de agora ele parecer um personagem de um filme em sépia, sua expressão não continha um pingo de brincadeira, era dura, séria e com um “que” de descontrole.

-O...olha aqui! – ela começou, tentando recuperar a postura e mostrar que não sentia medo, mesmo que o fizesse. Mas não teve tempo de começar seu teatro sem ensaio, o som de folhas sendo afastadas próximo fez com que os dois, sobressaltados, olhassem para o lado, o rapaz em um dilema cruel: não sabia se continuava a mirar nela, ou mudava o alvo de sua pistola para aquele que se aproximava.

Dentre um grupo de árvores e arbustos surgiu um rapaz um pouco mais novo que ele, com roupas extremamente parecidas. Sua camisa era vinho e a calça branca, não trazia nenhum lenço em sua cabeça, mas um em seu pescoço e tinha os pés descalços, ao contrário do outro que usava botas gastas e velhas. Quando o rapaz que havia imobilizado-a notou quem se aproximava, voltou a encarar a adolescentes molhada a sua frente. “Ótimo...” pensou, com uma careta se formando “são amigos.”

-Olha, uma branquela. – o mais novo disse, com um risinho indecente.

O destaque diante da ausência de pigmentação em sua pele estava começando a aborrecê-la. E daí se era branca como um fantasma? Existem muitas pessoas que também são assim, existem pessoas até mesmo piores do que ela, e disso tinha certeza. Seu sangue estava fervendo cuidadosamente, até chegar ao ápice da estupidez adolescente e, cega de frustração, ignorou completamente a pistola ainda voltada para o seu rosto.

-Qual é o problema de vocês, seus ultrapassados? Preconceito é ridículo, além de moralmente condenável! Ficaram presos na época dos seus avós, é? Viados!

Sua voz saiu alta, como um grito solitário em um abismo vazio. Sua voz se perdera entre as árvores, que funcionavam como um isolante sonoro, mas os rapazes diante dela ouviram muito bem as ofensas declamadas em uma voz realmente aguda, dançando em um sotaque desconhecido. O peito subia e descia pois agora estava ofegante, falara tudo depressa demais, esquecendo-se de respirar. O coração acelerado quase parou quando ela os pares de olhos que a encaravam. Um par, o do mais velho, eram quartzos congelados e furiosos, enquanto o do outro encontravam-se pontiagudos e ameaçadores. Estava mais pálida que o normal, o sangue fugia-lhe do rosto e deixava suas pernas bambas. O “clic” da pistola sendo preparada ecoou entre as árvores, fazendo alguns pássaros saírem de seus esconderijos.

Dois passos fizeram com que o metal frio tocasse sua testa, e arrepios involuntários espalhassem-se por seu corpo. Uma vez mais, engoliu de maneira dolorida a saliva que concentrava-se na boca fechada de lábios secos. Ele não parecia sentir dúvida alguma, enquanto ela definhava diante do medo e do terror. O rapaz atrás dele sorria, um sorriso de moleque satisfeito, como se tivesse feito uma armadilha para um coelho e ele estivesse a passos inquestionáveis de cair nela. Garotos podem ser cruéis. Queria falar alguma coisa. Explicar, se justificar. Pedir desculpar e salvar sua pele daquela situação. Mas não conseguiria fazê-lo. As palavras eram incapazes de se formar, e ela incapaz de proferi-las. não abaixou a cabeça, devido a paralisia do pânico. Mas seus olhos tentavam fixar-se nas folhar das árvores que formavam o plano de fundo, no entanto não havia concentração suficiente no mundo para desviar sua atenção do resultado iminente.

Minutos arrastaram-se, e uma fagulha de esperança surgiu. Uma minúscula fagulha que foi o suficiente. Quando as palavras começaram a emergir, algo cortou o avanço... Um som sublime arrancou a paz da floresta, e os pássaros afastaram-se grasnando e piando, desesperados...

...POW!...

Ela sentiu suas pernas tremerem e os braços despencarem ao lado de seu corpo, sem força. A cabeça ficou extremamente quente, enquanto o corpo todo estava gelado. Perdeu a força nos membros inferiores e sentiu o joelho chocar-se com as folhas mortas e úmidas.

Dizem que quando estamos diante da morte, podemos ver nossa vida passar diante de nossos olhos. Por um instante, ela viu o rosto de sua mãe, mas este não tardou a evaporar e abandoná-la naquela lugar estranho e absurdo. Um único pensamento flutuou em sua mente.

“Que vida mais sem graça foi essa...”

Quando ela era mais nova, se lembrava claramente que adorava gastar seu tempo com ambos os pais. Sentava-se entre eles no amplo sofá da sala e os obrigava a passar as tardes nebulosas assistindo desenhos animados. Nas tardes de sol, os arrastava até qualquer parquinho que houvesse e não permitia que eles se afastassem demais, ou tivessem seus momentos a sós. Apesar disto, eles sempre estavam sorrindo. Boa parte do tempo, a abraçavam calorosamente, e riam em uníssono. Faziam piqueniques na cozinha quando a mesa parecia muito chata, e tomavam café da manhã na hora do jantar quando não tinham fome o suficiente.

Aquela era sua rotina, escola, amigos e risadas em casa. Um dia, simplesmente, seu pai não sorriu mais. Suas respostas eram ríspidas, seus modos grosseiros. Sua mãe e ele discutiam quase sempre. Ou melhor, a mãe dela discutia, o pai parecia ignorá-la completamente. Desde então, ela passou a passar o máximo de tempo possível no colégio. Evitava ficar em casa. Via o sol se por com os meninos no campinho de futebol, apesar de ser péssima nisso. Voltava pra casa na hora do jantar, e subia para o seu quarto, para estudar. Fechava a porta e ligava o som no volume mais alto, para não ouvir os gritos e as lágrimas.

Quando abriu os olhos, todo seu corpo estava doendo e paralisado. Estava deitada de barriga para cima encarando a copa das árvores. O cabelo molhado deixava sua nuca gelada, mas havia algo cobrindo o corpo imóvel. Piscou algumas vezes até conseguir respirar profundamente e mover os braços, apoiando-se nos cotovelos e olhando ao redor. Havia uma manta de lã sobre seu corpo, aparentemente feita por retalhos de várias outras mantas. Estava entre árvores altas e densas, e ainda conseguia ouvir o som de uma chuva rala caindo bem acima de sua cabeça. Há quatro passos havia uma fogueira acesa, crepitando cuidadosamente na escuridão da floresta. Os dois rapazes que havia visto mais cedo estavam sentados ao redor dela, conversando calmamente, sorrisos negligentes nos lábios rachados.

-Bom dia, bela adormecida – falou o rapaz que havia tampado sua boca e apontado uma arma para sua cabeça.

Foi mais rápido do que ela, sua mãe ergueu-se até sua testa e esfregou-a, buscando o buraco que deveria estar ali, ou ao menos alguma atadura. Não havia nada, nem mesmo sangue seco ou algum relevo anormal. Os dois riram baixinho.

-Incrível como nossos ouvidos nos pregam peças, ham? – ele disse, lambendo os lábios sinuosamente até que, repentinamente, o som que havia atordoado seus ouvidos e feito-a cair de joelhos soou novamente. O som vinha de dentro da boca dele, moldado pelos lábios. – Bem legal, não acha?

-Legal? – ela exclamou nervosamente. – Eu diria de mal gosto, isso sim!

Os dois riram baixinho, o mais novo deu de ombros.

-As garotas são sempre as chatas.

-E os garotos os idiotas.

Os dois se encararam por alguns minutos, da mesma maneira que ela encarava os garotos da escola que resolviam comprar briga com ela ou com alguns dos outros “nerds”. E nesses momentos sempre existe um observador, que, após um minuto se cansa, e ri, faz um comentário desconfortável ou simplesmente se afasta. Desta vez, o observador riu da situação e tirou um pedaço de madeira que tinha um pedaço de carne espetado de dentro da fogueira.

-Esta pronto – ele falou, indo até ela e estendendo o espeto. –Não é exatamente a melhor coisa que você já comeu, mas aposto que esta com fome. – ela fitou desconfiada o pedaço de carne, hesitando em esticar a mão e pegá-lo. – Aliás – ele falou, quando ela finalmente segurou o graveto – Eu sou Dimitri, e esse é Hani.

Os olhos de mel encararam os olhos de quartzo na penumbra criada pela luz incerta do fogo. Quando ele estava virando-se, a voz dela nasceu do fundo da garganta e saiu rouca.

-Sarah – ela disse, fazendo-o virar a cabeça e olhá-la novamente. –Meu nome é Sarah.

As bochechas brancas se tornaram rosadas quando ele mostrou um sorriso estreito e provocador.

-Muito prazer, estrangeira.

Quando os três terminaram de comer Hani apagou a fogueira e Dimitri recolheu as poucas tralhas que eles tinham espalhadas. Havia duas sacolas que deviam estar escondidas dentre as árvores quando eles a encontraram, e agora eles a amarravam na sacola.

-Vista isso – Dimitri lhe estendeu um casaco masculino azul escuro, com botões de bronze e abotoaduras nas mangas – Você esta ensopada, e a última coisa que eu quero é uma garota gripada.

Enquanto ele lhe passava o casaco, tomou-lhe a coberta, enrolando-a e amarrando-a a sacola em suas costas. Além das folha,s o sol já havia se posto e uma lua crescente brilhava no céu com poucas estrelas. Eles caminharam para dentro da floresta durante pelo menos duas horas. Os pés de Sarah ardiam, machucados pelos gravetos quebrados e pelas folhas que estavam começando a se secar. O cabelo estava duro, devido a água e a sujeira, e ela conseguia sentir seu próprio cheiro. Para onde quer que eles estivessem indo, ela realmente esperava que houvesse algo como um banho. Quando quase não conseguia mais caminha, uma parede de pedras surgiu diante deles e ela temeu estarem perdidos. Hani olhou para Dimitri, que olhava para o extremo de cada lado do paredão.

-Ali – ele disse, virando a esquerda e caminhando mais quinhentos metros.

Escondido na sombra das rochas e por plantas trepadeira, havia a entrada de uma caverna, ou de um túnel. Hani se mostrou satisfeito com a visão, e tomou a dianteira, afastando os ramos de planta e adentrando a escuridão sem medo algum. O mais velho lhe deu passagem cordialmente, e ela seguiu o primeiro. Não sabia para onde ia, sequer conseguia enxergar as paredes ao seu redor. A única coisa que sabia é que não haviam mais plantas no chão, e poucas pedras pequenas trombavam contra os seus pés descalços. Após vinte cinco minutos o som de vozes, música e passos agitados começou a vir da direção que eles caminhavam

-Estamos perto! – anunciou Hani, alegre.

Ela ouviu os passos dele se apressando e sentiu Dimitri ao seu lado, apressando-a. Os sons ficavam mais altos, e vozes começaram a se distinguir. Até que eles conseguiram ouvir frases completas e uma luz quente atacou o rosto da garota, que protegeu-o instintivamente. Piscou várias vezes, sentido as lágrimas que surgiam cuidadosas. Quando conseguiu abrir os olhos o que ela viu a deixou boquiaberta. Era como se tivessem cavado no meio das montanhas um lugar aconchegante para não muitas pessoas.

Era uma vila arredonda, com paredes do tamanho de edifícios cercando-as. Várias aberturas surgiam nessas paredes, de onde vinham e iam pessoas vestidas com roupas coloridas e espalhafatosas. A maior parte não usava sapatos, e as casas eram de madeira e sobre rodas, como carroças adaptadas. Algumas tendas abertas estavam montadas, e dezenas de pessoas circulavam ali, crianças, adultos e idosos; todos apressados e espalhafatosos.

-Seja bem vinda, estrangeira – disse Dimitri, um sorriso orgulhoso nos lábios travessos.

-Bem vinda à onde? – ela perguntou, virando a cabeça para todos os lados.

Ele riu gostosamente, sem se surpreender.

-Ora, bem vinda a Toca dos Ratos.

Os olhos dela estavam dilatados enquanto ela tentava capturar cada detalhe do cenário diante de si. Sarah jamais havia visto algo como aquilo, já havia lido a respeito e visto desenhos ultrapassados, mas jamais havia estado em um local assim. Nunca havia sido capaz de tocar, ouvir e sentir os odores que enchiam o loca. E preferia que continuasse sem sentir, pois o cheiro era de condimentos, corpos suados e esterco. Dimitri a cutucou, fazendo um sinal para que ela o seguisse, e assim ela o fez, apenas o enxergando pelo canto do olho, estava ocupada demais tentando memorizar cada marca nas pedras e nas carroças.

Todos aqueles olhos estavam seguindo-o, alguns verdes, a maior parte quase pretos. As crianças a viam com curiosidade, e se aproximavam cuidadosamente, como se temessem se aproximar demais. Alguns pareciam prender a respiração para se aproximar mais e quase tocá-la, mas quando os olhos de mel os fitavam eles davam gritinhos e se afastavam, trombando em cestas empilhadas que se esparramavam. Quase sempre ela ouvia uma bronca em seguida. Os adultos não a olhavam com curiosidade, mas sim com o mesmo ódio e repulsa que Dimitri e Hani haviam lançado contra ela no primeiro momento em que a viram. Alguns desejavam distância, outros morte. Ela encolheu os ombros, intimidada, e apressou o passo para ficar mais próxima de Dimitri.

Ela percebeu que o círculo ovalado que era aquela estranha carvena aberta possuía um diâmetro maior do que ela havia imaginado a principio. Haviam rodas de quatro ou cinco carroças, ou casas com rodas, por toda a parte. Ruelas formadas por cestas, terra pisada e pedras incertas levavam os moradores para todos os lugares. Ao lado das carroças ou entre cercas baixas e não muito fortes havia todo tipo de animais, cavalos, alguns bois, galinhas, cabras e porcos. O cheiro do estrume enchia as narinas de Sarah, e o som dos cacarejos irritadiços irritava seus ouvidos. Ela sempre odiou galinhas, eram fedorentas e inconvenientes, e não muito gostosas. Além do mais, era impossível mantê-las presas. Sempre escapavam das cercas para bicar os seus dedos. Pensando nisso, ela passou a olhar com atenção também par ao chão, evitando as malditas parasitas de asas.

Ela notou que ao lado de cada entrada nas paredes havia uma tenda que poderia ser estendida até o extremo oposto, imaginou que aquilo servisse como uma porta, para que quem estivesse na caverna não visse a luz ou as sombras do vilarejo improvisado, e se afastasse. Ao mesmo tempo que tudo aquilo parecia uma casa de hippies, também parecia um refúgio, do tipo que ela lia a respeito em livros medievalistas ou em filmes com o Mel Gibson.

No centro da toca havia uma carroça pintada de vermelho, verde e preto. As rodas eram maiores e havia dois cavalos ao lado dela, pastando. Dimitri fez um sinal para que ela esperasse do lado de fora e puxou a bandana, fazendo-a se solta e cair por seu rosto. O cabelo preto tinha cachos bem definidos e pesados, criando cortinas escuras no rosto bronzeado. Ele afastou o cabelo antes de bater na porta e entrar, subindo um degrau alto e fechando a porta. Hani ficou ao seu lado, tentando, assim como ela, ouvir o que acontecia lá dentro.

-Quem mora ai? – ela perguntou baixinho para o rapaz de cabelos pretos curtos.

-É o “pai” do Dimi – ele respondeu.

Pai? Para que ele tinha ido falar com o pai? Ele ia desposá-la, por acaso? Se fosse assim, ele devia falar com o pai dela. Ou melhor, com ela! Mas não fazia sentido nenhum ele querer casar com ela, afinal, ela era uma “branca”, como ele e Hani haviam feito questão de destacar.

-Para que ele foi falar com o pai? E porque estamos sussurrando? – ela perguntou, e Hani quase riu.

-O “pai” dele é o que você poderia chamar de chefe.

-Ele é o filho do líder?! – a voz de Sarah se elevou, e Hani segurou com força uma gargalhada, concordando com a afirmação da garota.

Ela sabai que seus olhos haviam se dilatado de novo e seu coração disparado com a novidade. Se as coisas continuassem daquele jeito, ia enfartar antes de seu pai.

Saber que estava em pé diante da casa do possível líder daquele possível grupo organizado fazia-a se sentir ansiosa e desconfortável. Entrelaçava os dedos do pé, sobrepujando um seguido do outro. Arrancava a pele ao redor das unhas, mordiscava o canto dos lábios, tudo isso por ainda ter que esperar aquele maldito fanfarrão sair de dentro da casa do papai. Ela sabia com estava em pé sobre algo afiado e melindroso. Poderia estar tendo aquela sorte invejável de estar no lugar errado e na hora errada, mas ser encontrada pela pessoa certa, ou então estaria sofrendo daquele azar indiscriminado, podendo estar submetida não apenas ao encontro de três coisas erradas, como também todo um universo de artimanhas contra ela. Incrivelmente era muito mais simples avaliar a possibilidade do azar acima de tudo, do que a sorte nos cantos do prato.

Quando a porta se abriu e Dimitri a encarou novamente, ela não sabia o que fazer. Se estivesse em casa, segura pelas leis que conhecia, estaria despejando uma multidão de palavras impróprias e tapas superficiais, mas ali ela era uma estrangeira, que não conhecia nada, e ele...Bem, ele era o filho do chefe, né?

-E aí? – perguntou Hani, enquanto o amigoco colocava a bandana na cabeça.

-Ah, nada demais – ele estava descontraído, calhorda! Não custa nada ser direto, custa? – Quer que encontremos roupas, ela vai ficar na casa da sra. Diamantina e vai conversar com ele amanhã.

-Só isso? – Sarah não conseguiu se conter, e nem mesmo ficou vermelha quando os dois olharam-na.

-Você quer mais alguma coisa? – ele perguntou, debochado.

-Não! – ela se apressou em dizer. –Não, não... Parece...ótimo.

Dimitri riu do nervoso da menina, e novamente ela gostaria de estar em seu mundo, submetida às suas próprias regras. Mas não estava, pelo menos não aparentemente, então rendeu-se àquele destino momentâneo sem se debater mais.

-Vêm, eu te levo até a casa da Diamantina. Acho que vai gostar dela, é uma senhora que adora fazer as pessoas comerem... – ele e Hani riram, como se aquilo fosse para ser engraçado.

-Você por algum acaso esta me chamando de gorda? – Sarah perguntou, irritada.

-Ora, não seja presunçosa! Você não chega a ser gorda! Mas esta cheinha o suficiente para abrir o apetite de alguém com fome.

Ele falou como se aquilo fosse um elogio, mas ela sentiu o sangue ferver e desferiu um tapa sem pensar no ombro do rapaz. O som do tapa se ergueu no ar, tomando impulso e se lançando no chão seco. Ela estava furiosa e com lágrimas nos olhos. As lágrimas subiam de nível e as íris começaram a se afogar quando a água salgada vazou e ela virou de costas par aos dois. Nem Dimitri nem Hani sabiam o porque daquelas lágrimas, e nem mesmo ela saberia dizer porque se importara.









-Aqui estão as primeiras sete partes do Desventuras de Tardes Tediosas. A minha intenção era facilitar os novos leitores a acompanhar a história, espero que isto ajude. Agora que as primeiras sete partes estão mais acessíveis, fica mais fácil para que novos fãs sejam trazidos para o blog. Obrigada pela freqüência.


-Meu nome não é Níh;