quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

As primeiras sete partes de uma desventura

A chuva caía insolente, jogava-se contra as janelas e esparramava-se pelo vidro, fazendo-se de íntima. Os olhos da menina seguiam as gotas suicidas em sua queda de fim próximo, perdendo-as de vista poucos segundos após concentrar-se em uma nova, e, sempre que o fazia, buscava uma nova na multidão que se arremessava das nuvens neste mundo ingrato.

Os cabelos lisos caiam sobre os ombros, o queixo encostado na madeira, a respiração criando enormes manchas embaçadas no vidro, que dissipava-se tão rápido quanto ela podia respirar. Os braços estavam caídos ao lado do corpo curvado, e ela mexia na calça de flanela que cobria as pernas roliças. A casa estava vazia, e o silêncio desfilava sem preocupação pela sala, cozinha e quartos. Imperava sem ameaça, exceto pela chuva que trovejava lá fora.

Quando era mais nova, tinha medo da chuva. Em uma tarde como esta, estaria em seu quarto, encolhida sob as cobertas, abraçando um de seus muitos bichinhos de pelúcia e escondendo o rosto na barriga deste. Mas agora estava grande demais para tais infantilidades, mesmo que os bichinhos continuassem espalhados por todo seu quarto, empilhados em prateleiras, na cama, largados no chão, chutados pelas gavetas e por ela.

Tinha muita preguiça de ir até a cozinha fazer um pouco de chocolate quente para aquecer o peito e a barriga.

A distância entre a sala e o quarto era gigantesca, portanto continuaria com os pés brancos de frio e as unhas roxas pela friagem, se ficasse doente ainda seria melhor, não precisaria ir para a escola.

Os cadernos e livros estavam preparados sobre a mesa de carvalho maciço, a lapiseira largada em cima da folha de linhas azuis, onde já havia algumas palavras escritas, mas ela não tinha interesse algum em ir estudar. Perda de tempo, irritante e nauseante. Faria-a sentir sono, e isso era a última coisa que queria: sentir sono. Não agüentava mais dormir pelos cantos, perder suas tardes sob as cobertas, deixando o mundo passar enquanto ela dormia.
Exausta de sua própria inutilidade, ergueu as costas. A visão exaustiva do campo sem nada que vinha depois de sua casa deixava-a doente, a grama indistinta que crescia horrorosa, e jamais era aparada, a colina sem romance, sem árvore e sem balanço de pneu. A garagem vazia, e os estudos atrasados. O quadro de sua vida parecia uma grande porcaria visto dali, e desistiu de pensar.

Levantou-se e olhou as roupas velhas que cobriam o corpo acima do peso, rondou com os olhos as redondezas dentro da casa, e pareceu satisfeita em comprovar que realmente encontrava-se solitária naquela tarde vazia.
Abriu a porta sem pensar mais de uma vez, deixou o vento gélido furar sua carne com as agulhas da friagem e não retesou-se. Fechou a porta as suas costas e pulou descalça na grama molhada. A água cobria-a, abraçava-a e tirava-a para dançar.

Girava sem pensar na chuva, os olhos semi abertos, sentindo a água molhar seu cabelo, seu rosto e seu corpo. Os braços abertos par ao céu, abraçando-o com carinho, cariciando-o, assim como ele acariciava-a. Permitiu que as água lhe tocassem e a rendessem, e permaneceu ali por longos minutos, correndo na grama molhada, enchendo-se de lama e grama úmida. Correu colina acima, ignorando o pinicar do mato alta que cutucava seus pés e suas panturrilhas. Foi até o alto, e girou, ficando de frente para as casas enfileiradas, de braços abertos e olhos fechados. Gritou, alto e ruidosamente, a plenos pulmões. Queria que todos, e que ninguém, a ouvisse. E berrou longamente na chuva estrondosa, e somente quando a voz lhe faltou e a garganta aranhou é que arqueou o corpo e, num impulso, alegre, abriu os olhos para ver o resultado de seus gritos mudos.
E não foram apenas seus gritos que neste momento permaneceram mudos. Todo seu corpo emudeceu diante de uma surpresa inquieta, e, sem palavras, ela despencou. Sentada na lama, com as roupas sujas e molhadas, o corpo enregelado que pensava poder contar com um banho quente encolhido, os lábios secos e as mãos trêmulas.
A chuva ainda despencava tolamente, mas não sobre sua casa e sobre a de seus vizinhos enfadonhos. Ela despencava sobre um pequeno vilarejo onde as casas eram feitas de pedra e madeira, as flores bebiam contentes da chuva incessante, a grama aparada e bela brilhava na torrente constante, e ela podia ver a luz de velas ou lareiras escapar pelas janelas redondas. e, antes que pudesse erguer, uma voz foi ouvida, e ela apenas não gritou pois uma mão bem maior que a sua tampou sua boca, e outra rodeou seu tórax, imobilizando-a.

-Calada – sussurrou a voz, cuidadosamente, em seu ouvido.

Era uma voz masculina e grave, que parecia nascer no meio da garganta e vir à tona de maneira gutural. Não era necessário muito esforço para perceber que o dono da voz também era o dono das mãos e dos braços que a calavam e a imobilizavam. Ele a fez erguer-se um pouco do chão, mas não o suficiente para que ficassem eretos. Ambos agachados rastejaram para trás de um caminho de arbustos que crescia nas bordas da estrada de terra e pequenas pedras na qual ela se encontrava. Uma vez por detrás das folhas ela foi obrigada a se ajoelhar com o homem ao seu lado, ainda com a mão sobre sua boca e o braço passando por debaixo de seus seios. Ele a detinha com menos força, atento ao observar por entre as pequenas e numerosas folhas o caminho no qual estava há pouco.

Curiosa como apenas uma adolescente é capaz de ser, mesmo que numa situação de perigo, ela se esforçou para superar a barreira natural, e ver o que ele via. Após pouco mais de dois minutos um grupo se aproximou do exato lugar onde ela havia despencado de joelhos. Dez homens formavam-no, um sobre um cavalo e todos os outros a pé. Chapéus semelhantes àqueles usados por volta do século XV cobriam cabeças nas quais perucas brancas e antiquadas encontravam residências. O homem sobre o cavalo, além de pomposo e uma expressão de absoluto nojo em relação a tudo que o cercava carregava uma estranha bandeira que ela nunca havia visto antes. Com franjas douradas nas bordas, e dividida ao meio pelas cores vermelho e preto, havia um brasão ao centro no qual duas espadas renascentistas cruzavam-se, uma gigantesca água estava pousada em suas lâminas, uma coroa em sua cabeça e uma estranha e assustadora expressão nos pequenos olhos bordados em linho e algodão.

Todos os casacos vermelhos com botões negros levavam o mesmo brasão, assim como os chapéus e as espadas que encontravam-se nas cinturas dos soldados. Eles marchavam uniformemente carregando estranhas armas, semelhantes a espingardas. Apenas quando eles se afastaram e o som dos cascos do cavalo batendo nas pedras e na terra molhada tornou-se distante e imperceptível quando um farfalhar de folhas, que o homem ergueu-a de trás dos arbustos.

-Fique quieta só mais um pouco – ele falou, sua voz encontrava-se em um tom extremamente baixo e ele guiava-a de costas para longe do vilarejo.

Após cerca de dez passos a garota que encontrava-se praticamente de pijamas notou que árvores começaram a surgir ao seu redor, eram dezenas dela se não demorou para que um verdadeiro bosque a cercasse. As copas das árvores eram tão grandes e densas que a chuva não conseguia vencê-las, e caia como um chuvisco ocasional no chão coberto de folhas mortas e amarronzadas. O homem de face desconhecida a soltou repentinamente. A perda de apoio fez com que ela cambaleasse e quase caísse sentada no chão macio. Seus dedos do pé, agora lilases, estavam imundos com a lama e fragmentos das folhas mortas, a visão lhe causou uma pequena onda de ânsia. Balançou a cabeça, agitando os longos cabelos encharcados e espalhando água para todos os lados, como um cachorro extremamente peludo após o banho.

Ergueu a cabeça para ver quem que havia imobilizado-a e, aparentemente, arrancado-a de uma situação complicada. Surpreendeu-se imensamente ao notar que o homem que encontrava-se há cinco passos de distância aparentava ter cerca de vinte anos e utilizava roupas curiosas e ultrapassadas. Quer dizer, ele usava mangas bufantes em uma camisa de linho barato, haviam várias pulseiras de couro enroladas no pulso um pouco magro, as calças verde musgo eram um pouco grudadas, e até curtas demais para os padrões aos quais ela estava acostumada. Havia brincos de argola dourados pendurados em suas orelhas, e colares de ouro velho no pescoço, além de uma bandana preta com bordados vermelhos feito a mão na cabeça, ocultando a maior parte do parecia ser uma cabelo preto e cacheado. Ele não parecia o tipo de rapaz que freqüentava a faculdade, nem mesmo as faculdades mais estranhas como a de artes cênicas, ou artes plásticas. Não, ele parecia um personagem de filme de época, o cara que dança na praça tocando uma flauta, um tambor, uma gaita, ou algo do tipo.

Seus olhos eram como um par de quartzos negros eram pontudos sem ser polidos, profundos e exuberantes e duros como a própria pedra, fixos nela com receio e uma pitada de ódio acumulado. A garota recuou, sem perceber realmente o que fazia. Estava ensopada com a chuva de seu lar e deste, apesar de as gotas serem incapazes de continuarem atingindo-a. Ele parecia tão intrigado a respeito de seus trajes quanto ela a respeito dos dele, e nenhum disse nada enquanto encaravam-se, ele forte e confiante, cheio de rancor; ela encolhida, duvidosa e até mesmo um pouco amedrontada. Depois de poucos mais que dois minutos encarando-se, foi ele que se pronunciou. A voz ainda gutural tinha tanta ameaça quanto da primeira vez que ela a ouviu, e parecia ainda mais intimidadora agora que ela encarava as feições joviais do jovem que assemelhava-se de maneira assustadora aos nômades medievais.

-O que uma branca faz longe de casa?

A pergunta fez com que ela se sentisse ligeiramente ofendida, não que não fosse branca, sabia que era, pálida como um fantasma e com olheiras gigantescas e arroxeadas ao redor dos olhos castanho-mel. Mas o que ela ser ou não ser branca tinha haver com o fato de estar longe de casa? Pensou em uma dezena de respostas mal educadas para dizer, mas não lhe pareceu sensato, portanto, quando começou a abrir a boca para retrucar, mudou de idéia, recuando o corpo e fechando a boca repentinamente.

-Digna demais para responder? – ele falou, um sorriso cafajeste e ofendido surgindo nos lábios escuros. Os dentes eram escurecidos e, um deles, dourado. Levou a mão direita para as costas e, quando esta retornou, havia uma pistola entre os dedos, apontada diretamente para a cabeça dela. – Será que agora vou ouvir sua vozinha aguda?

Os olhos dela alargaram-se instantaneamente, igualmente por medo quanto por surpresa. A pistola que lhe era apontada era extremamente rústica e antiquada, remontando o período renascentista. Feita de madeira e de ferro, era movida a pólvora e usava balas gigantescas e pesadas. Mas, apesar de agora ele parecer um personagem de um filme em sépia, sua expressão não continha um pingo de brincadeira, era dura, séria e com um “que” de descontrole.

-O...olha aqui! – ela começou, tentando recuperar a postura e mostrar que não sentia medo, mesmo que o fizesse. Mas não teve tempo de começar seu teatro sem ensaio, o som de folhas sendo afastadas próximo fez com que os dois, sobressaltados, olhassem para o lado, o rapaz em um dilema cruel: não sabia se continuava a mirar nela, ou mudava o alvo de sua pistola para aquele que se aproximava.

Dentre um grupo de árvores e arbustos surgiu um rapaz um pouco mais novo que ele, com roupas extremamente parecidas. Sua camisa era vinho e a calça branca, não trazia nenhum lenço em sua cabeça, mas um em seu pescoço e tinha os pés descalços, ao contrário do outro que usava botas gastas e velhas. Quando o rapaz que havia imobilizado-a notou quem se aproximava, voltou a encarar a adolescentes molhada a sua frente. “Ótimo...” pensou, com uma careta se formando “são amigos.”

-Olha, uma branquela. – o mais novo disse, com um risinho indecente.

O destaque diante da ausência de pigmentação em sua pele estava começando a aborrecê-la. E daí se era branca como um fantasma? Existem muitas pessoas que também são assim, existem pessoas até mesmo piores do que ela, e disso tinha certeza. Seu sangue estava fervendo cuidadosamente, até chegar ao ápice da estupidez adolescente e, cega de frustração, ignorou completamente a pistola ainda voltada para o seu rosto.

-Qual é o problema de vocês, seus ultrapassados? Preconceito é ridículo, além de moralmente condenável! Ficaram presos na época dos seus avós, é? Viados!

Sua voz saiu alta, como um grito solitário em um abismo vazio. Sua voz se perdera entre as árvores, que funcionavam como um isolante sonoro, mas os rapazes diante dela ouviram muito bem as ofensas declamadas em uma voz realmente aguda, dançando em um sotaque desconhecido. O peito subia e descia pois agora estava ofegante, falara tudo depressa demais, esquecendo-se de respirar. O coração acelerado quase parou quando ela os pares de olhos que a encaravam. Um par, o do mais velho, eram quartzos congelados e furiosos, enquanto o do outro encontravam-se pontiagudos e ameaçadores. Estava mais pálida que o normal, o sangue fugia-lhe do rosto e deixava suas pernas bambas. O “clic” da pistola sendo preparada ecoou entre as árvores, fazendo alguns pássaros saírem de seus esconderijos.

Dois passos fizeram com que o metal frio tocasse sua testa, e arrepios involuntários espalhassem-se por seu corpo. Uma vez mais, engoliu de maneira dolorida a saliva que concentrava-se na boca fechada de lábios secos. Ele não parecia sentir dúvida alguma, enquanto ela definhava diante do medo e do terror. O rapaz atrás dele sorria, um sorriso de moleque satisfeito, como se tivesse feito uma armadilha para um coelho e ele estivesse a passos inquestionáveis de cair nela. Garotos podem ser cruéis. Queria falar alguma coisa. Explicar, se justificar. Pedir desculpar e salvar sua pele daquela situação. Mas não conseguiria fazê-lo. As palavras eram incapazes de se formar, e ela incapaz de proferi-las. não abaixou a cabeça, devido a paralisia do pânico. Mas seus olhos tentavam fixar-se nas folhar das árvores que formavam o plano de fundo, no entanto não havia concentração suficiente no mundo para desviar sua atenção do resultado iminente.

Minutos arrastaram-se, e uma fagulha de esperança surgiu. Uma minúscula fagulha que foi o suficiente. Quando as palavras começaram a emergir, algo cortou o avanço... Um som sublime arrancou a paz da floresta, e os pássaros afastaram-se grasnando e piando, desesperados...

...POW!...

Ela sentiu suas pernas tremerem e os braços despencarem ao lado de seu corpo, sem força. A cabeça ficou extremamente quente, enquanto o corpo todo estava gelado. Perdeu a força nos membros inferiores e sentiu o joelho chocar-se com as folhas mortas e úmidas.

Dizem que quando estamos diante da morte, podemos ver nossa vida passar diante de nossos olhos. Por um instante, ela viu o rosto de sua mãe, mas este não tardou a evaporar e abandoná-la naquela lugar estranho e absurdo. Um único pensamento flutuou em sua mente.

“Que vida mais sem graça foi essa...”

Quando ela era mais nova, se lembrava claramente que adorava gastar seu tempo com ambos os pais. Sentava-se entre eles no amplo sofá da sala e os obrigava a passar as tardes nebulosas assistindo desenhos animados. Nas tardes de sol, os arrastava até qualquer parquinho que houvesse e não permitia que eles se afastassem demais, ou tivessem seus momentos a sós. Apesar disto, eles sempre estavam sorrindo. Boa parte do tempo, a abraçavam calorosamente, e riam em uníssono. Faziam piqueniques na cozinha quando a mesa parecia muito chata, e tomavam café da manhã na hora do jantar quando não tinham fome o suficiente.

Aquela era sua rotina, escola, amigos e risadas em casa. Um dia, simplesmente, seu pai não sorriu mais. Suas respostas eram ríspidas, seus modos grosseiros. Sua mãe e ele discutiam quase sempre. Ou melhor, a mãe dela discutia, o pai parecia ignorá-la completamente. Desde então, ela passou a passar o máximo de tempo possível no colégio. Evitava ficar em casa. Via o sol se por com os meninos no campinho de futebol, apesar de ser péssima nisso. Voltava pra casa na hora do jantar, e subia para o seu quarto, para estudar. Fechava a porta e ligava o som no volume mais alto, para não ouvir os gritos e as lágrimas.

Quando abriu os olhos, todo seu corpo estava doendo e paralisado. Estava deitada de barriga para cima encarando a copa das árvores. O cabelo molhado deixava sua nuca gelada, mas havia algo cobrindo o corpo imóvel. Piscou algumas vezes até conseguir respirar profundamente e mover os braços, apoiando-se nos cotovelos e olhando ao redor. Havia uma manta de lã sobre seu corpo, aparentemente feita por retalhos de várias outras mantas. Estava entre árvores altas e densas, e ainda conseguia ouvir o som de uma chuva rala caindo bem acima de sua cabeça. Há quatro passos havia uma fogueira acesa, crepitando cuidadosamente na escuridão da floresta. Os dois rapazes que havia visto mais cedo estavam sentados ao redor dela, conversando calmamente, sorrisos negligentes nos lábios rachados.

-Bom dia, bela adormecida – falou o rapaz que havia tampado sua boca e apontado uma arma para sua cabeça.

Foi mais rápido do que ela, sua mãe ergueu-se até sua testa e esfregou-a, buscando o buraco que deveria estar ali, ou ao menos alguma atadura. Não havia nada, nem mesmo sangue seco ou algum relevo anormal. Os dois riram baixinho.

-Incrível como nossos ouvidos nos pregam peças, ham? – ele disse, lambendo os lábios sinuosamente até que, repentinamente, o som que havia atordoado seus ouvidos e feito-a cair de joelhos soou novamente. O som vinha de dentro da boca dele, moldado pelos lábios. – Bem legal, não acha?

-Legal? – ela exclamou nervosamente. – Eu diria de mal gosto, isso sim!

Os dois riram baixinho, o mais novo deu de ombros.

-As garotas são sempre as chatas.

-E os garotos os idiotas.

Os dois se encararam por alguns minutos, da mesma maneira que ela encarava os garotos da escola que resolviam comprar briga com ela ou com alguns dos outros “nerds”. E nesses momentos sempre existe um observador, que, após um minuto se cansa, e ri, faz um comentário desconfortável ou simplesmente se afasta. Desta vez, o observador riu da situação e tirou um pedaço de madeira que tinha um pedaço de carne espetado de dentro da fogueira.

-Esta pronto – ele falou, indo até ela e estendendo o espeto. –Não é exatamente a melhor coisa que você já comeu, mas aposto que esta com fome. – ela fitou desconfiada o pedaço de carne, hesitando em esticar a mão e pegá-lo. – Aliás – ele falou, quando ela finalmente segurou o graveto – Eu sou Dimitri, e esse é Hani.

Os olhos de mel encararam os olhos de quartzo na penumbra criada pela luz incerta do fogo. Quando ele estava virando-se, a voz dela nasceu do fundo da garganta e saiu rouca.

-Sarah – ela disse, fazendo-o virar a cabeça e olhá-la novamente. –Meu nome é Sarah.

As bochechas brancas se tornaram rosadas quando ele mostrou um sorriso estreito e provocador.

-Muito prazer, estrangeira.

Quando os três terminaram de comer Hani apagou a fogueira e Dimitri recolheu as poucas tralhas que eles tinham espalhadas. Havia duas sacolas que deviam estar escondidas dentre as árvores quando eles a encontraram, e agora eles a amarravam na sacola.

-Vista isso – Dimitri lhe estendeu um casaco masculino azul escuro, com botões de bronze e abotoaduras nas mangas – Você esta ensopada, e a última coisa que eu quero é uma garota gripada.

Enquanto ele lhe passava o casaco, tomou-lhe a coberta, enrolando-a e amarrando-a a sacola em suas costas. Além das folha,s o sol já havia se posto e uma lua crescente brilhava no céu com poucas estrelas. Eles caminharam para dentro da floresta durante pelo menos duas horas. Os pés de Sarah ardiam, machucados pelos gravetos quebrados e pelas folhas que estavam começando a se secar. O cabelo estava duro, devido a água e a sujeira, e ela conseguia sentir seu próprio cheiro. Para onde quer que eles estivessem indo, ela realmente esperava que houvesse algo como um banho. Quando quase não conseguia mais caminha, uma parede de pedras surgiu diante deles e ela temeu estarem perdidos. Hani olhou para Dimitri, que olhava para o extremo de cada lado do paredão.

-Ali – ele disse, virando a esquerda e caminhando mais quinhentos metros.

Escondido na sombra das rochas e por plantas trepadeira, havia a entrada de uma caverna, ou de um túnel. Hani se mostrou satisfeito com a visão, e tomou a dianteira, afastando os ramos de planta e adentrando a escuridão sem medo algum. O mais velho lhe deu passagem cordialmente, e ela seguiu o primeiro. Não sabia para onde ia, sequer conseguia enxergar as paredes ao seu redor. A única coisa que sabia é que não haviam mais plantas no chão, e poucas pedras pequenas trombavam contra os seus pés descalços. Após vinte cinco minutos o som de vozes, música e passos agitados começou a vir da direção que eles caminhavam

-Estamos perto! – anunciou Hani, alegre.

Ela ouviu os passos dele se apressando e sentiu Dimitri ao seu lado, apressando-a. Os sons ficavam mais altos, e vozes começaram a se distinguir. Até que eles conseguiram ouvir frases completas e uma luz quente atacou o rosto da garota, que protegeu-o instintivamente. Piscou várias vezes, sentido as lágrimas que surgiam cuidadosas. Quando conseguiu abrir os olhos o que ela viu a deixou boquiaberta. Era como se tivessem cavado no meio das montanhas um lugar aconchegante para não muitas pessoas.

Era uma vila arredonda, com paredes do tamanho de edifícios cercando-as. Várias aberturas surgiam nessas paredes, de onde vinham e iam pessoas vestidas com roupas coloridas e espalhafatosas. A maior parte não usava sapatos, e as casas eram de madeira e sobre rodas, como carroças adaptadas. Algumas tendas abertas estavam montadas, e dezenas de pessoas circulavam ali, crianças, adultos e idosos; todos apressados e espalhafatosos.

-Seja bem vinda, estrangeira – disse Dimitri, um sorriso orgulhoso nos lábios travessos.

-Bem vinda à onde? – ela perguntou, virando a cabeça para todos os lados.

Ele riu gostosamente, sem se surpreender.

-Ora, bem vinda a Toca dos Ratos.

Os olhos dela estavam dilatados enquanto ela tentava capturar cada detalhe do cenário diante de si. Sarah jamais havia visto algo como aquilo, já havia lido a respeito e visto desenhos ultrapassados, mas jamais havia estado em um local assim. Nunca havia sido capaz de tocar, ouvir e sentir os odores que enchiam o loca. E preferia que continuasse sem sentir, pois o cheiro era de condimentos, corpos suados e esterco. Dimitri a cutucou, fazendo um sinal para que ela o seguisse, e assim ela o fez, apenas o enxergando pelo canto do olho, estava ocupada demais tentando memorizar cada marca nas pedras e nas carroças.

Todos aqueles olhos estavam seguindo-o, alguns verdes, a maior parte quase pretos. As crianças a viam com curiosidade, e se aproximavam cuidadosamente, como se temessem se aproximar demais. Alguns pareciam prender a respiração para se aproximar mais e quase tocá-la, mas quando os olhos de mel os fitavam eles davam gritinhos e se afastavam, trombando em cestas empilhadas que se esparramavam. Quase sempre ela ouvia uma bronca em seguida. Os adultos não a olhavam com curiosidade, mas sim com o mesmo ódio e repulsa que Dimitri e Hani haviam lançado contra ela no primeiro momento em que a viram. Alguns desejavam distância, outros morte. Ela encolheu os ombros, intimidada, e apressou o passo para ficar mais próxima de Dimitri.

Ela percebeu que o círculo ovalado que era aquela estranha carvena aberta possuía um diâmetro maior do que ela havia imaginado a principio. Haviam rodas de quatro ou cinco carroças, ou casas com rodas, por toda a parte. Ruelas formadas por cestas, terra pisada e pedras incertas levavam os moradores para todos os lugares. Ao lado das carroças ou entre cercas baixas e não muito fortes havia todo tipo de animais, cavalos, alguns bois, galinhas, cabras e porcos. O cheiro do estrume enchia as narinas de Sarah, e o som dos cacarejos irritadiços irritava seus ouvidos. Ela sempre odiou galinhas, eram fedorentas e inconvenientes, e não muito gostosas. Além do mais, era impossível mantê-las presas. Sempre escapavam das cercas para bicar os seus dedos. Pensando nisso, ela passou a olhar com atenção também par ao chão, evitando as malditas parasitas de asas.

Ela notou que ao lado de cada entrada nas paredes havia uma tenda que poderia ser estendida até o extremo oposto, imaginou que aquilo servisse como uma porta, para que quem estivesse na caverna não visse a luz ou as sombras do vilarejo improvisado, e se afastasse. Ao mesmo tempo que tudo aquilo parecia uma casa de hippies, também parecia um refúgio, do tipo que ela lia a respeito em livros medievalistas ou em filmes com o Mel Gibson.

No centro da toca havia uma carroça pintada de vermelho, verde e preto. As rodas eram maiores e havia dois cavalos ao lado dela, pastando. Dimitri fez um sinal para que ela esperasse do lado de fora e puxou a bandana, fazendo-a se solta e cair por seu rosto. O cabelo preto tinha cachos bem definidos e pesados, criando cortinas escuras no rosto bronzeado. Ele afastou o cabelo antes de bater na porta e entrar, subindo um degrau alto e fechando a porta. Hani ficou ao seu lado, tentando, assim como ela, ouvir o que acontecia lá dentro.

-Quem mora ai? – ela perguntou baixinho para o rapaz de cabelos pretos curtos.

-É o “pai” do Dimi – ele respondeu.

Pai? Para que ele tinha ido falar com o pai? Ele ia desposá-la, por acaso? Se fosse assim, ele devia falar com o pai dela. Ou melhor, com ela! Mas não fazia sentido nenhum ele querer casar com ela, afinal, ela era uma “branca”, como ele e Hani haviam feito questão de destacar.

-Para que ele foi falar com o pai? E porque estamos sussurrando? – ela perguntou, e Hani quase riu.

-O “pai” dele é o que você poderia chamar de chefe.

-Ele é o filho do líder?! – a voz de Sarah se elevou, e Hani segurou com força uma gargalhada, concordando com a afirmação da garota.

Ela sabai que seus olhos haviam se dilatado de novo e seu coração disparado com a novidade. Se as coisas continuassem daquele jeito, ia enfartar antes de seu pai.

Saber que estava em pé diante da casa do possível líder daquele possível grupo organizado fazia-a se sentir ansiosa e desconfortável. Entrelaçava os dedos do pé, sobrepujando um seguido do outro. Arrancava a pele ao redor das unhas, mordiscava o canto dos lábios, tudo isso por ainda ter que esperar aquele maldito fanfarrão sair de dentro da casa do papai. Ela sabia com estava em pé sobre algo afiado e melindroso. Poderia estar tendo aquela sorte invejável de estar no lugar errado e na hora errada, mas ser encontrada pela pessoa certa, ou então estaria sofrendo daquele azar indiscriminado, podendo estar submetida não apenas ao encontro de três coisas erradas, como também todo um universo de artimanhas contra ela. Incrivelmente era muito mais simples avaliar a possibilidade do azar acima de tudo, do que a sorte nos cantos do prato.

Quando a porta se abriu e Dimitri a encarou novamente, ela não sabia o que fazer. Se estivesse em casa, segura pelas leis que conhecia, estaria despejando uma multidão de palavras impróprias e tapas superficiais, mas ali ela era uma estrangeira, que não conhecia nada, e ele...Bem, ele era o filho do chefe, né?

-E aí? – perguntou Hani, enquanto o amigoco colocava a bandana na cabeça.

-Ah, nada demais – ele estava descontraído, calhorda! Não custa nada ser direto, custa? – Quer que encontremos roupas, ela vai ficar na casa da sra. Diamantina e vai conversar com ele amanhã.

-Só isso? – Sarah não conseguiu se conter, e nem mesmo ficou vermelha quando os dois olharam-na.

-Você quer mais alguma coisa? – ele perguntou, debochado.

-Não! – ela se apressou em dizer. –Não, não... Parece...ótimo.

Dimitri riu do nervoso da menina, e novamente ela gostaria de estar em seu mundo, submetida às suas próprias regras. Mas não estava, pelo menos não aparentemente, então rendeu-se àquele destino momentâneo sem se debater mais.

-Vêm, eu te levo até a casa da Diamantina. Acho que vai gostar dela, é uma senhora que adora fazer as pessoas comerem... – ele e Hani riram, como se aquilo fosse para ser engraçado.

-Você por algum acaso esta me chamando de gorda? – Sarah perguntou, irritada.

-Ora, não seja presunçosa! Você não chega a ser gorda! Mas esta cheinha o suficiente para abrir o apetite de alguém com fome.

Ele falou como se aquilo fosse um elogio, mas ela sentiu o sangue ferver e desferiu um tapa sem pensar no ombro do rapaz. O som do tapa se ergueu no ar, tomando impulso e se lançando no chão seco. Ela estava furiosa e com lágrimas nos olhos. As lágrimas subiam de nível e as íris começaram a se afogar quando a água salgada vazou e ela virou de costas par aos dois. Nem Dimitri nem Hani sabiam o porque daquelas lágrimas, e nem mesmo ela saberia dizer porque se importara.









-Aqui estão as primeiras sete partes do Desventuras de Tardes Tediosas. A minha intenção era facilitar os novos leitores a acompanhar a história, espero que isto ajude. Agora que as primeiras sete partes estão mais acessíveis, fica mais fácil para que novos fãs sejam trazidos para o blog. Obrigada pela freqüência.


-Meu nome não é Níh;

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